terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A descoberta do Atol das Rocas e o despertar ecológico

Lembranças de uma expedição pioneira ao Atol das Rocas


Catu em uma das suas expedições
   Por Maria do Céu Borralho e Albuquerque

No ano de 1977 tive o privilégio de participar de uma expedição ao atol das Rocas, no oceano Atlântico. A iniciativa e principal organizador desta aventura foi meu irmão, o oceanógrafo José Catuêtê Borralho e Albuquerque, o Catu. Formado na segunda turma do curso de oceanografia da Fundação Universidade Federal de Rio Grande (FURG), no Rio Grande do Sul, Catu deixou uma marca na história do meio ambiente no Brasil.

Em uma viagem à ilha de Fernando de Noronha, no ano anterior, ele e seus companheiros sobrevoaram duas pequenas ilhas localizadas a cerca de 148 km a oeste do arquipélago de Fernando de Noronha, e a aproximadamente 260 km a nordeste da cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. A beleza do lugar, identificado como Atol das Rocas encantou a todos. De volta, e apaixonado pela descoberta da existência de um atol no Brasil, o que ainda não havia sido mencionado no curso, Catu empenhou-se em organizar uma expedição ao local.

O grupo era heterogêneo. O que nos unia, principalmente, era uma grande camaradagem e o desejo de conhecer o único atol presente no Atlântico Sul, localizado no território brasileiro.

Nosso amigo, Edgar Vasques, arquiteto e desenhista, também se incorporou `a expedição e seu pai, senhor Helio, um homem de quem guardo uma doce recordação, não concordou com o plano, e disse ao Edgar: “É um bando de loucos e tu és a besta que vai junto!”. Esta manifestação não desmotivou nosso amigo e lá se foi ele junto com o grupo.

 Também eu, que não sou boa nadadora, quando disse ao Catu que queria ir junto, ele, gaiatamente respondeu: “Tudo bem, vais como categoria isca. Isca de tubarão!” E assim, na categoria isca, fui aceita na expedição.

Meu irmão, morto em acidente no ano de 1988, foi um homem adorável e deixou muitas saudades. Criativo, amigo, amoroso, inteligentíssimo e, tenho certeza, um grande brasileiro à frente de seu tempo.


 Permanecemos em Natal, ponto de partida, até alugarmos um barco que nos levasse e buscasse. Compramos os mantimentos e água. Conseguimos autorização da Marinha e ultimamos toda a logística, que já havia sido definida durante o ano, o que incluía um radio para contato com o continente durante a estadia no atol.

Fomos orientados pela capitania dos portos a sempre usarmos roupas brancas de mangas compridas. O atol, que é uma formação coralínea a partir de uma erupção vulcânica formou essas duas ilhas, quase ao nível do mar. Sua superfície é formada por depósitos das colônias de corais, algas calcáreas e outros micro crustáceos, o que concentra muita luminosidade. Além disso o atol se localiza a 4 graus abaixo da linha do Equador e os riscos de queimaduras sérias é um fato. Duas das moças que participaram da expedição teimaram em não levar a serio esta orientação e sofreram muitas queimaduras.

Neste lugar, de que até hoje tenho viva lembrança, a maré varia pelo menos uns metros. Lembro que na maré cheia uma das ilhas praticamente desaparecia. Quando eu estava por lá para ver as aves que ali nidificam e a maré começava a subir, me apressava a voltar para a Ilha do Farol. A correnteza que se formava era forte e, como categoria isca, precisava manter meus olhos bem abertos.

Vou voltar na história para contar a nossa viagem. O barco que alugamos tinha na sua tripulação dois homens, pai e filho. Lamento não lembrar dos seus nomes, mas recordo bem que o radio do barco parou de funcionar logo na saída e, mesmo assim, resolvemos continuar. A cor do mar, fora da plataforma continental, era de um azul muito denso, extremamente bonito. Lauro Saint Pastous Madureira, outro companheiro, pescou com uma linha presa ao barco um enorme dourado durante a viagem. Era um casal de dourados e não tenho certeza se o outro também foi pescado. Durante a noite aconteceu uma tempestade muito forte. As ondas lavavam o barco. Tive muito medo e lembro que rezei. Acho que não tive duvidas sobre a minha fé nesta hora. Passamos todo o outro dia procurando o atol. O comandante do barco havia nos dito que se não encontrássemos o atol até a noite, deveríamos voltar.

Felizmente, enquanto já preparávamos o jantar, eu, que por não ter enjoado apesar do mar revolto, havia sido elevada à categoria de Imediata do barco, auxiliava o cozinheiro quando ouvi o grito: farol a vista! Muita emoção!

Aguardamos o dia seguinte para que, quando a maré estivesse alta, pudéssemos fazer o desembarque.

A visão daquelas duas pequenas ilhas ficou gravada na minha memória para sempre. Coisa de sonho. Milhares de aves de diferentes especies ali fazem seus ninhos e o constante gralhar e movimento das mesmas causam uma forte impressão. Na época, além das aves, havia um pequeno coqueiro, as ruínas do antigo farol, da casa aonde morou o faroleiro com sua família e o farol automatico, em funcionamento.

Nossos dias eram de mergulhos e registros do ambiente encontrado. A maioria dos participantes tinha ligação com a área biológica e estava ali também com um olhar de estudo.

Naquele período pudemos identificar que havia a desova de tartarugas marinhas na ilha. Já havíamos visto o chão da praia revolto pela manhã, mas não sabíamos que eram as tartarugas que subiam para desovar. Em uma madrugada testemunhamos os pescadores, do barco que havíamos alugado e tinham ido nos buscar, no atol promovendo uma mortandade da espécie.

Isto chocou e revoltou a todos do grupo que, com muita discussão, conseguiu interromper esta verdadeira chacina. Por sorte éramos muitos. O grupo todo tinha umas 17 pessoas. Este triste episódio, devidamente registrado e fotografado, serviu para demonstrar a necessidade de se proteger as tartarugas marinhas. Eram os primórdios de uma conscientização ambiental.

Fora este triste episódio, tudo o mais foi beleza e encantamento. Havia bons mergulhadores entre nós e todo o dia tínhamos peixe fresco para preparar à noite. Lauro Barcellos, representando o Museu Oceanográfico de Rio Grande, cujo diretor, Professor Eliezer de Carvalho Rios, sempre apoiou as expedições realizadas no período, era o chef em exercício e preparava excelentes refeições para o grupo. As barracudas eram deliciosas e lindas.


 Mesmo com minha pouca habilidade no mergulho, por estarmos em lugar de águas cristalinas, pude visualizar com a ajuda de mascara, snorkel e pés de pato, uma infinidade de colônias de corais, anêmonas, peixes diversos e até filhotes de tubarão muito animados que chegavam pelo lado de dentro do anel de corais.

Uma noite, nosso amigo Edgar não apareceu para o jantar. Desde que chegara do mergulho, à tarde, permanecera recolhido em sua barraca. Fui chamá-lo e, quando ele me viu disse: “Hoje compreendi a angustia de Beethoven!” Ele sofreu perfuração de um tímpano durante o mergulho e a dor e a surdez que se seguiu fizeram-no pensar no grande músico, também vítima da surdez.

A partir da nossa volta, com o apoio da Maria Tereza Jorge Pádua, então diretora do departamento de parques do antigo IBDF, para o qual Catu já trabalhava, de Renato Petry Leal, da Fundação Zoobotânica de Porto Alegre e do Museu Oceanográfico de Rio Grande foram encaminhados os pedidos da criação da primeira Reserva Biológica Marinha do Brasil e do Projeto de Preservação das Tartarugas Marinhas.

O Atol das Rocas foi declarado Reserva Biológica Marinha em 5 de junho de 1979 e o Projeto Tamar foi instituído em 1980.


 Dedico este texto a José Catuêtê. Empreendedor e visionário, participou ativamente da criação da Reserva Biologica Marinha do Atol das Rocas. Fundou o projeto Tamar, junto com o oceanógrafo Guy Marie Marcovaldi. Criou e deixou as bases do Projeto Peixe-Boi Marinho.

Catu deixou um importante legado para a preservação ambiental no Brasil, ajudando a despertar uma consciência ecológica até então muito incipiente. Como disse meu pai, José da Silva e Albuquerque:

“Um gênio do amor a serviço da natureza.”


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