segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Genial! O relato mais fantástico que li sobre O GOL de Maradona!

 10.6 segundos

de Hernán Casciari

   Se llama Alí Bin Nasser y, mientras los otros corren, él camina despacio. Tiene cuarenta y dos años y está avergonzado: sabe que nunca más será llamado a arbitrar un partido oficial entre naciones.

   También sabe que si, doce años antes, cuando se lesionó en la liga tunecina, le hubieran dicho que estaría en un Mundial, no lo habría creído. Tampoco la tarde en que se convirtió en juez: en Túnez no es necesario, para acceder al puesto, más que tener el mismo número de piernas que de pulmones.

   Cuando dirigió su primer partido descubrió que sería un árbitro correcto. Fue más que eso: logró ser el primer juez de fútbol al que reconocían por las calles de la ciudad. Lo convocaron para las eliminatorias africanas de 1984 y su juicio resultó tan eficaz que, un año más tarde, fue llamado a dirigir un Mundial.

   En México le pedían autógrafos, se sacaban fotos con él y dormía en el hotel más lujoso. Había arbitrado con éxito el Polonia-Portugal de la primera fase, y vigilado la línea izquierda en un Dinamarca-España en donde los daneses jugaron todo el segundo tiempo al achique; él no se equivocó ni una sola vez al levantar el banderín.

   Cuando los organizadores le informaron que dirigiría un choque de cuartos —nunca un juez tunecino había llegado tan lejos—, Alí llamó a su casa desde el hotel, con cobro revertido, se lo contó a su padre y los dos lloraron.

   Esa noche durmió con sofocones y soñó dos veces con el ridículo. En el primer sueño se torcía el tobillo y tenía que ser sustituido por el cuarto árbitro; en el sueño, el cuarto árbitro era su madre. En el segundo sueño saltaba al campo un espontáneo, le bajaba los pantalones y él quedaba con los genitales al aire frente a las televisiones del mundo.

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sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Da série perguntar não ofende:

Será que com a ida do chefe de gabinete do deputado Júlio Garcia para a Secretaria da Casa Civil do governo de Carlos Moisés outro aliado de primeira hora do deputado, Nelson Castello Branco Nappi Júnior, voltará para o cargo de secretário-adjunto de Administração?

As laranjas eram podres

 por Marcos Bayer


   A Constituição Estadual:
Art. 196. Aos Procuradores dos Poderes do Estado e aos delegados de polícia é assegurado o tratamento isonômico previsto no art. 26, §§ 1º e 2º, aplicando-se-lhes o disposto no art. 100, I a III.

   Este artigo é uma homenagem ao Professor de Direito Constitucional na UFSC, Márcio Collaço. Ao Dr. Sobral Pinto e ao Dr. Afonso Arinos de Mello Franco.
   Todos os três, cada um à sua maneira, ensinam que a Lei Constitucional é sagrada.
   Um certo cidadão catarinense, parece que advogado público, resolveu protocolar na ALESC, pedido de impeachment contra o governador por cumprimento ao dispositivo constitucional.
Argumentou que ele cometera crime por executar o que a Lei determina.
   No dia de Santa Catarina, 25 de Novembro, o TJSC disse que cumprir a Constituição não é crime. Ainda bem.
   O engraçado é que o presidente da ALESC, Júlio Garcia, recebeu o pedido do tal advogado público, submeteu à análise da sua douta consultoria jurídica e chegaram a conclusão de que obedecer a Constituição é crime.
   Pois bem, mais de 75% dos senhores deputados acataram a tese. Com fúria beirando ao fanatismo, votaram: Afastem o governador. No primeiro escrutínio do Tribunal de Julgamento, o placar foi 6 x 4 pelo afastamento do governante. No segundo escrutínio, por 6 x 3 votos Moisés foi absolvido.
   Tivesse vocação para o poder, subiria na absolvição, empunharia a espada de oficial e iria governar.
   Mas, não sabe o que é governar e nem apetite tem para tanto. Tanto é que após aposentadoria de comandante, foi secretariar um vereador do sul, depois conhecido por Esmeraldino, o portuário.
   De tanto falar em entregas, acabou entregando o governo a seus algozes.
   Lá em Tijucas, aprendemos desde meninos, que a entrega é feita pelo leiteiro, pelo padeiro e pelo carteiro. E que quem é governo, governa.
   Moisés recebeu do povo catarinense o poder para quebrar uma estrutura de poder viciada e prejudicial ao interesse público. Mas, como todo boçal suburbano não entendeu a mensagem. Preferiu a cerveja artesanal, a viola e a vergonha a que foi submetido.
   Moisés retorna ao poder, até que se decida sobre o segundo pedido de impeachment. Aquele dos respiradores chineses pagos antecipadamente no valor de RS 33 milhões.

   Moisés, como se diz entre os que conhecem a doma de cavalos, foi cabresteado pelo PSD e outras forças políticas.
Está pronto para ser montado. Será uma marionete com empáfia e pseudo sapiência. Vai passar dois anos "entregando" não sabemos o que, ainda. Chegou como o Cavaleiro do Santo Graal e agora é o ajudante do vigário.
   Quanto aos deputados, voláteis como o gás metano, salvo exceções, recomenda-se ler e estudar a Constituição.
   Vamos agora para o próximo pedido de impeachment. E, depois, ainda temos um terceiro pedido de impeachment, fruto da CPI dos respiradores chineses pagos antecipadamente.
   Se não me engano a Augusta Casa tem uma escola de formação para qualificar seus funcionários.
   Seria o caso de abrir uma classe extra para os senhores deputados, nas matérias ÉTICA e CONSTITUCIONALIDADE.
   Aprender nunca é demais.
   Aos membros do Judiciário catarinense, membros do Tribunal de Julgamento, presidido pelo Dr. Roesler, parabéns pelo preparo intelectual e acuidade.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Ali babá e os seus babões

por Marcos Bayer

  É uma releitura do clássico persa, parte do imaginário humano, durante séculos.
   Este artigo é uma homenagem a um descendente de italianos, de segunda geração, como muitos que fizeram a história de Santa Catarina.
   Filho de Joaçaba, advogado, vereador, quatro mandatos estaduais, deputado e presidente da ALESC, presidente do Tribunal de Contas, Consultor Chefe do Estado e professor.
   Nelson Pedrini foi político numa época em que a Política era praticada com mais hombridade. Mais preparo e mais cultura.
   Os atuais deputados estaduais, em número superior a 75% da composição da Augusta Casa, já votaram pela admissibilidade de dois pedidos de impeachment, contra o governador e um contra a vice governadora.
   Deste ela já se livrou..
   Ele aguarda o desfecho afastado e ela está no exercício do cargo.
   Isto todos sabem.
   O que não sabem, é que aquela vontade esmagadora em derrubar o governador está empalidecendo.
   Surgem rumores de que os chefes do executivo e do legislativo aventam um acordo.
   Rumores, são rumores.
   Podemos e devemos, com muita atenção, acompanhar o andamento dos processos na ALESC.
   O golpe inicial já foi debelado. Mas, as areias do deserto ainda podem ofuscar a visão de alguns.
   E o tilintar das moedas de ouro do mercador de Bagdá pode provocar sorrisos escusos protegidos pelas noites cintilantes dos céus das Arábias.
   O fascínio pelo poder e pela fortuna fácil são tentações previstas no Al Corão.
   Cabe à imprensa catarinense, sempre aprimorada por estímulos misteriosos, funcionar de forma impermeável às regras do Bazar.
 
   Salam salamaleiko salam.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Os últimos dias de Gilberto Dimenstein. Forte. Comovente!

A descoberta do dengo

O comovente livro em que Gilberto Dimenstein e Anna Penido registraram as últimas semanas de vida do jornalista (FSP)
 
   O “caranguejo que me comia por dentro” — como Gilberto Dimenstein chamava o câncer que surgiu em seu pâncreas e, em meses, foi alongando as garras até atingir o fígado e os pulmões do jornalista — estava sem controle. Haviam se passado seis meses de tratamentos agressivos, quando o médico anunciou para ele e Anna, sua mulher, que nada havia adiantado.

   Chegando da consulta, ela decidiu ligar para o médico. Queria fazer perguntas que não teve coragem de fazer na frente do marido. Gilberto não quis ouvir a conversa e foi para a edícula, um refúgio em meio ao enorme jardim da casa em que moravam. Anna ouviu do especialista a palavra que ninguém enfiado nos círculos infernais do câncer quer ouvir: “terminal”.

   Também jornalista, baiana dedicada à educação e às causas sociais, ela caminhou até a edícula e disse ao marido que só contaria o que ele quisesse saber. “Gil quis assistir um filme, comigo ao lado. Colocou Jojo Rabbit (uma sátira à Alemanha de Hitler) pra rodar. Ele adorava ver filme em que os nazistas se ferram. Quando acabamos, contei tudo pra ele”, me disse ela, em uma de nossas conversas pelo telefone, quando saía às pressas de uma loja. Tinha caído no choro na hora de pagar as compras. A cena se dava seis meses depois da morte do marido. O luto, assim como o mal que levara Gil, Anna estava sentindo, é ardiloso.

   A morte veio três semanas depois do filme na edícula. No livro que escreveram juntos, contando sobre os dias em que a doença se espichou, Anna descreve como o marido partiu, na cama deles, depois de quatro dias de despedidas. Nesse tempo, ele quis comer a empanada de frango do Bar do Zé, perto dali, gravou o último depoimento para o livro e chorou, de mãos dadas com a mãe, os irmãos e por último os dois filhos. Desculpou-se por não ter sido mais afetuoso e ouviu deles que era muito amado.

   As horas finais, diz o comovente e lúcido relato de Anna, se deram assim:

   Você estava sedado. Na madrugada, o meu corpo sentiu saudades e atravessou a extensão do nosso colchão para se colar ao seu. Sua respiração se agitou e seus braços começaram a se debater, como se quisessem me envolver em um abraço que se desfazia no meio do caminho. A enfermeira aumentou a dose de morfina, mas você só se acalmou quando voltei para a outra extremidade da cama […] Em um determinado momento, achei que já estava na hora e pedi para você se imaginar entrando naquele barquinho vermelho e amarelo que navegava nas suas alucinações […] e deslizasse pelas águas tranquilas do rio que margeia a ilha do Mosqueiro [no Pará], abrigo das suas memórias de infância. […] Uma lágrima escorreu dos seus olhos cerrados e sua respiração ficou mais grave e arrastada. Não demorou muito para que estivéssemos todos reunidos à sua volta. Gabriel e Marcos [filhos dele] aninhados na cama conosco, Joana [filha dela]ao telefone lá de Lisboa. Ouvimos juntos a sua música tema, “Clube da Esquina 2”. “Porque se chamava homem, também se chamavam sonhos, e sonhos não envelhecem".

   Ninguém escolhe como nasce, mas a gente pode escolher, se tiver alguma sorte, como vai morrer. E eu escolhi me render, me deixar levar, me disse Dimenstein, quando estivemos juntos, dois meses antes de sua morte, em maio. Ele tentava me convencer que o câncer estava lhe dando os melhores dias de sua vida e que por isso estava satisfeito em ir embora. No livro, o jornalista explica como adotar essa atitude diante da morte lhe foi possível.

   Sentia-me um analfabeto emocional […]. Eu fazia reportagens, escrevia livros, ganhava prêmios, mas era um zero à esquerda nos relacionamentos [...] Cheguei aos 63 anos cercado de pessoas que me desprezavam ou me admiravam, mas sem um círculo de amigos próximos. [...] Meu filho Marcos ainda era bem pequeno quando a professora pediu que desenhasse a nossa família. No desenho, ele estava de frente, de mãos dadas com a mãe e o irmão Gabriel, e eu estava de costas, trabalhando no computador. Fiquei muito perturbado com aquela imagem.

   O câncer chegou um ano e pouco depois que o filho de Marcos, primeiro neto de Dimenstein, nasceu. Com Zeca, o jornalista descobriu o dengo.

   Meu neto era antídoto para muitos dos meus desconfortos com a doença. Quando vinha dormir conosco, a Anna passava uma hora cantando cantigas de ninar. Deitava ao lado deles e parecia que era eu que estava sendo colocado para dormir. Mas ninguém dormia, pois o Zeca perguntava a todo momento: “Por que o coelho comeu a cenoura com casca e tudo? Por que o pato bateu no marreco?” Aquela tempestade de porquês me fascinava. Quando dormia na nossa cama, passava a noite girando até ficar atravessado entre mim e a Anna. Eu adorava acordar de madrugada e vê-lo deitado naquela posição. Sentia um amor incondicional, um contentamento que nunca tive. [...] Seus pais comentavam algo sobre mim, quando ele [então com dois anos] profetizou: “O tempo passou o homem. Vovô vai virar luz. Luz na bunda do vovô”.

   O tratamento quimioterápico causava em Dimenstein esgotamento físico. Como ficava a maior parte do tempo deitado, resolveu assistir a filmes antigos. “Revi O poderoso chefão e me espantei com as cenas de Marlon Brando dialogando com Al Pacino. Eu pensava: ‘Como não vi essas expressões antes?’ Não vi porque o meu corpo estava no cinema, mas a minha mente vagava por outro lugar”, analisa. “Eu nunca estava presente. Estava sempre afobado.” O câncer, ele conta, abriu seus olhos para as sutilezas, como a do vermelho escandaloso das helicônias que cresciam no jardim de sua casa, que ele via todo dia, quando tomava café da manhã, mas nunca tinha notado.

   Nos dias em que se sentia mais forte, o jornalista se entregava ao prazer das sensações corpóreas. “Pedalava minha bicicleta e sentia o vento beijar o meu rosto. Às vezes, estava deitava de frente para a janela do meu quarto e a brisa vinha brincar com os meus pés. Muitas dessas sensações me fizeram lembrar da minha infância, quando ainda não tinha sido corrompido. [...] Tomar um sorvete de limão siciliano com maracujá no meio da tarde passou a ter um significado diferente. Lambia a minha casquinha e compreendia que ninguém ao meu lado seria capaz de imaginar o prazer que aquele sorvete me dava.” Dimenstein ainda me contou que tomava canabidiol para dormir e que estava adorando, porque com ele tinha sonhos lindos. Um dia, exagerou na dose do remedinho, e Anna o encontrou dormindo com o rosto no prato de comida.

   Gilberto Dimenstein era um homem culto, encrenqueiro, sedutor imparável, preocupado com causas sociais, por vezes rude, e engraçado. Ele conta no livro situações envolvendo essas características, sem uma gota de modéstia e com a autodepreciação clássica dos bons escritores judeus — sua ascendência é sefardita. Já no fim da vida, por exemplo, um médico quis fazer mais uma de um caminhão de tomografias a que ele vinha se submetendo para ver que órgão agora o caranguejo tinha beliscado. Ele disse ao doutor: “Não vai adiantar. Toda vez que faço uma ‘tomo’, sou eu que tomo no cu”. Na mesma época, ligou para a ex-mulher. “Pedi desculpas por não ter sido um bom marido, e ela me confessou que lamentava não ter me dado uns tapas. Comentei: ‘Olha, perdeu a chance, porque, agora que estou velho e doente, vai pegar mal pra burro se você me bater’.”

   Veja, CBN e O Globo foram alguns dos lugares onde trabalhou, mas foi na Folha de S.Paulo, onde atuou por 28 anos, que Dimenstein realizou suas principais reportagens. Investigou casos de corrupção em Brasília — virou detrator do coronel baiano Antônio Carlos Magalhães —, desvendou esquemas de assassinato de meninos que viviam na rua e de redes de exploração sexual de meninas pobres do Norte e Nordeste. “Ajudei a criar organizações sem fins lucrativos importantes; mais adiante, fundei o portal Catraca Livre, que sempre deu destaque a temáticas cidadãs. [...] Sabia que a minha contribuição tinha sido modesta, nada que pudesse se comparar a personalidades como Martin Luther King, Mahatma Gandhi e Konrad Adenauer. Perto desses gigantes, me via como um pernilongo. Mas, diante de mim mesmo, sentia que havia sido um Luther King, um Gandhi, um Adenauer.”

   A doença agarrou Dimenstein num momento em que ele estava forte. Parara de fumar havia décadas, de beber, fazia seis anos (“Era um prazer imenso acordar cedo, tomar café e, em seguida, beber um Jack Daniel’s”, ele conta no livro, sobre um antigo hábito). Não tomava café nem comia carne vermelha, pedalava por horas e fazia musculação quase todo dia. A decisão foi tomada meio a contragosto (“Sempre tive um pouco de desprezo por quem fazia esporte. Achava que era desperdiçar um tempo que poderia ser mais bem utilizado com leitura e estudo”), ao perceber dificuldades para carregar o neto. Dois meses antes tinha feito check-up: estava tudo ok. Mas uma noite ele teve um sonho.

   Em A interpretação dos sonhos, Sigmund Freud discorre sobre diversos casos em que pacientes “descobrem” doenças quando estão dormindo: “Aristóteles já declarara ser bastante provável que o sonho chame nossa atenção para estados patológicos incipientes dos quais ainda nada se percebe na vigília, e autores médicos, cujos pontos de vista certamente estão distantes da crença nos dons proféticos do sonho, pelo menos admitiram sua importância no anúncio de doenças”. Algo nesse horizonte pode ter acontecido com Dimenstein. Ele escreve:

   “Você está com câncer”. Foi uma coisa muito rápida. A mulher aparecia de corpo inteiro, vestida com uma roupa escura, mas eu só me lembro do seu rosto iluminado [...] Não parecia um ser etéreo, mas uma médica confiável, apresentando um diagnóstico”.

   Intrigado, já que gozava de boa saúde, resolveu procurar um médico. E assim, descobriu o bicho.

   Em meio a todas essas impactantes experiências, a que mais emocionava o jornalista era a que ele vivia com Anna Penido, sua mulher, àquela altura, fazia vinte anos.

   Eu não sabia o que era o amor de verdade, nem que seria possível amar outra pessoa com tamanha profundidade. Nunca imaginei que experimentaria o nível de cumplicidade que passei a ter com a Anna [...]. Quando acordava na madrugada e abraçava o corpo dela, sentia como se minha alma degelasse [...]. O grande momento do dia eram as sessões de massagem da Anna. O ritual começava com um banho demorado. Eu sentava em uma cadeira plástica, embaixo daquela água quente, sentindo desaparecerem os cheiros do vômito, da urina e da doença. Com a pele ainda úmida, deitava atravessado no colchão, e a Anna tocava delicadamente os meus pés. Sentia as mãos dela subindo pelas minhas pernas, alcançando as minhas costas, mas nunca me lembrava do final. Eu dormia experimentando aquele gozo relaxante e sorria ao pensar que a nossa relação ficava cada dia melhor.

   Ainda jovenzinha em Salvador, Anna conheceu Dimenstein, que já era um jornalista famoso, pela televisão. Ela sofria bullying na redação, onde era chamada de “menina que toma conta da creche” por só querer dar boas notícias. Nos anos seguintes, a vida primeiro, e depois um buliçoso desejo ajeitaram para que se encontrassem em palestras e seminários, justamente sobre boas notícias: projetos na área da educação. Ambos eram casados, mas não foi possível ignorar o que sentiam. No primeiro jantar a sós, num restaurante do Rio, no dia do aniversário do jornalista, o corpo de Anna tremia de tensão, quando, do nada, uma taça de cristal estourou na mesa. Dimenstein contou a ela que os judeus quebram copos nas cerimônias de casamento. E prenunciou que eles ficariam juntos. Juntos, por duas décadas, tocaram uma porção de trabalhos.

   Gil morreu antes que o livro ficasse pronto. Dias depois do sepultamento, Anna refugiu-se sozinha na casa de montanha do casal. Sentada numa escrivaninha de madeira, editou os escritos do marido e anexou ao livro suas próprias memórias.

   “Sou grata a você por um milhão de motivos, mas me sinto especialmente agradecida por você ter me engravidado deste livro”, escreveu. Deixou registrada também, para quem for forte o suficiente para ler, a última gravação que o marido fez.

   Eu não costumo chorar assim, mas este choro é o mérito de um grande amor, em que eu fui muito abaixo dela. Eu agradeço por ter conhecido esta cumplicidade. E, neste momento, o meu livro acaba.
 
Gilberto Dimenstein e Anna Penido
Os últimos melhores dias da minha vida
Ils. Paulo von Poser
Record • 140 pp • R$ 34,90 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Como se roubam nas eleições americanas

 



 
                por Natalia Viana, codiretora da Agência Pública 
   
   Quando, na noite de quarta-feira, o estado americano de Nevada interrompeu sua contagem com apenas 8 mil votos de diferença, anunciando que só atualizaria os números na quinta pela manhã, senti um frio na espinha.

   Imediatamente me vieram à cabeça duas eleições recentes no continente. Em 2018, em Honduras, quando a apertada contagem de votos para a disputa presidencial foi suspensa por uma “queda no sistema” e dois dias depois o presidente apareceu reeleito, seguiram-se diversos e violentos protestos. No ano passado, a suspensão temporária da contagem rápida para as eleições bolivianas levou a protestos, acusações de fraude e ao exílio do presidente Evo Morales.

   Seria diferente, se os Estados Unidos da América fossem ainda a mais sólida democracia do continente. Mas basta ouvir as ameaças contínuas de Donald Trump e de seus eriçados seguidores para perceber que o país do norte está tão à mercê de aventuras autoritárias quanto os nossos.

   Donald Trump tem se aprimorado em desestabilizar a democracia dos EUA de maneiras sem precedentes. Muito antes do dia de votação, já avisava que não ia aceitar nenhum resultado que não fosse sua vitória – e que ia entrar na justiça para isso. Durante a dolorosa milonga em que se transformou a contagem dos votos, entrou com processos contra as normas da Pensilvânia e para pedir a recontagem de votos em Michigan e Wisconsin.

   Nada novo para Trump, que vem há décadas subvertendo o sistema americano com a sua matilha de advogados bem pagos e sem caráter. No livro “American Oligarchs”, a jornalista investigativa Andrea Bersntein demonstra como ele repetidamente evadiu milhões de dólares em impostos, fugiu de investigações, comprou testemunhas e contratou a altos salários procuradores que antes o investigavam. Foi assim que conseguiu montar seu império de entretenimento, que vai de hotéis e cassinos de luxo e campos de golfe, sempre com a marca do terrível mau gosto – império esse que, conforme apontam diversas investigações, pode ser apenas uma grande lavanderia de dinheiro para oligarcas russos.

   Mas Trump não está sozinho nessa. Há pelo menos uma década são exatamente as Cortes que vêm apoiando a derrubada de presidentes na América Latina. Foi a Suprema Corte de Honduras que deu legitimidade ao golpe de estado contra Manuel Zelaya em 2009, quando ele foi sequestrado da sua casa no meio da noite. No Paraguai, depois de um impeachment que durou 24 horas, a Corte Suprema, parcialmente financiada pelos EUA, também deu seu aval. Aqui, nem se fala.

   A verdade é que os juízes do continente também estão bem contentes com o protagonismo que lhes tem sido dado. Afinal, em meio ao esfacelamento da democracia, a política tem virado um caso para os tribunais.

   Vale lembrar que, há 20 anos, foi a Corte Suprema americana que suspendeu a recontagem de votos na Flórida, permitindo que Bush ganhasse o estado – e a presidência – por apenas 537 votos. Dessa vez, Joe Biden já avisou que vai até o fim: os democratas reuniram milhares de advogados voluntários para a batalha legal que começa agora. E que deve ser longa.