sábado, 5 de abril de 2014

Fato venéreo


   Por Márcio Dison*
   Geraldo era seu melhor amigo. Beto gostava de um boteco, principalmente se fosse um pé sujo. A denominação envolve mesmo a rara higiene do lugar, feito exclusivamente para beber e jogar conversa fora. Só os corajosos ou com estômago de avestruz ousam comer em uma birosca destas.

   Beto frequentou bastante o Petit , no centro, onde viveu a melhor fase de sua boa idade rodeado de amigos. Adorava o Roma, um bar que sempre se autodenominou restaurante. Citou casos em suas colunas, passagens maravilhosas, pessoas da mais fina estirpe - o Clube Doze era um vizinho ilustre - que deram o ar da graça no Roma.

   O ser humano é absurdamente teimoso, perde um amigo mas não perde a questão, deixa a emoção suplantar a razão e com isso sofre. O sofrimento da infância pobre deu o tempero ao caráter de Beto. Quem consegue o que deseja sem dificuldade normalmente não valoriza o que obtém. Mas quando se chega à maturidade, sofrer é ridículo.

   Depois dos 40 , quando se pressupõe que se esteja estabilizado emocional e financeiramente, é chegada a hora de consolidar amizades. Beto já tinha galgado os 50 mas mantinha a rotina de antes dos 30. Perdeu noites em centenas de algazarras cívicas. Geraldo, absolutamente sincero, fala de Beto como um privilegiado da noite: passar mal mesmo só quando tomou Campari, garrafa em única vez , no Roda Bar. Vale a propaganda: só ele é assim! 
- Geraldo ri à farta.

   Os bares não estão mais entre as centenas de predicados da Ilha em que nasceu. São lendas. Como o Ponto Chic e o Cristal. Como a história de que todo gaúcho é macho. Esqueçam a xenofobia. Beto contou esta pouco antes de ser levado por SIDA, uma doente da vida.

   Saboreava uma cerveja - era o tempo das louras argentinas e paraguaias - quando estaciona no balcão de um bar qualquer um armário com sotaque de Pelotas e pede uma caninha. Está incrivelmente pilchado, no mais do surreal que Beto se obriga a soltar gargalhadas de prazer.

   Toma a cachaça de um tapa e pede outra , enquanto passa os olhos pelas dez mesas repletas de ironia. Caiu de surgir a seu lado um travesti, cheio de maneirismos e disposto a uma Norteña - a prima pobre paraguaia - porque a grana era curta e estava em curso uma briga entre Governo e cervejarias brasileiras.

- Mas que barbaridade! – Disse com espanto, olhando o traveco de cabo a rabo. – Que desperdício para um vivente.
- Pois olha que sou mais macho que tu – aguento rindo o que não suportas chorando. - A réplica foi incisiva.

   A plateia assistia perplexa. Tirou o chapéu de aba larga, bebeu a caninha com cara de bravo e cometeu a maior besteira de sua vida:

- Não fica me desafiando, guria, porque não tem ninguém mais macho que este gaúcho aqui.

   O travesti, com ar blasé,não se fez de rogado e ofereceu as armas:

- Se és macho mesmo, pega a faca ali e corta os pulsos.....

   O sempre atencioso Volney não teve tempo de pegar a faca com a qual cortara dois limões para a última caipirinha. O gaúcho deu dois talhos profundos no pulso esquerdo, o sangue espalhou-se pelo ambiente e o travesti, boquiaberto , só teve tempo de ouvir o barbicacho exclamando:

- Esqueci que não posso ver sangue!
   Quando a ambulância chegou , um estava desmaiado em cima do outro. Beto morreu mas Geraldo é a prova viva deste conto que, a propósito, não teve aumento de sequer um ponto. E ponto final.

*Márcio Dison é jornalista e professor, natural de Porto.......... União/SC

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