Pela qualidade do texto e pela precisão do conteúdo, reproduzo artigo do
Elio Gaspari (FSP/O Globo)
Prezada presidente,
Outro dia disseram-me que seu governo procura o “nosso Oswaldo Cruz”
para lidar com o mosquito Aedes aegypti, e, na semana passada, a senhora
se reuniu com cerca de 50 pessoas para discutir o assunto. Vosmicê já
telefonou para o presidente dos Estados Unidos e fez um pronunciamento à
nação, prometendo uma “megaoperação” saneadora. Todas vossas reuniões
são teatralmente coreografadas e divulgadas. Poesias políticas valem
tanto quanto os devaneios do Olavo Bilac a ouvir estrelas.
Eu sentei na vossa cadeira de 1902 a 1906 e, graças ao doutor Oswaldo,
livrei o Rio de Janeiro da praga da febre amarela. Não creio que sejam
de muita valia as lembranças de um tempo que hoje chamam de República
Velha. Escrevo-lhe com o ponto de vista de quem ocupou a Presidência da
República. Para que vosmecê não perca seu tempo, resumo o que vou lhe
dizer: vosso Oswaldo Cruz não existe. O que existe é o poder do
presidente da República e sua forma de exercê-lo.
Eu também assumi o compromisso do saneamento. O Rio estava empesteado e
fui ajudado pelo acaso. Como proibi a acumulação de cargos no serviço
público, demitiu-se o diretor da Saúde Pública da cidade, o ilustre
presidente da Academia Nacional de Medicina. Um médico sugeriu a um
ministro o nome de um rapaz que eu não conhecia, nem de nome. Ao
convidá-lo ele apresentou duas condições: queria recursos (todos querem)
e liberdade para demitir e nomear na sua jurisdição. Comprometi-me com
as duas exigências.
Dias depois nomeei um médico para trabalhar na diretoria de Saúde
Pública. Era uma indicação do ministro que me trouxera o nome do doutor
Oswaldo Cruz. O moço reagiu e disse que ia-se embora. Chamei o ministro e
mandei que desfizesse a nomeação.
Com toda razão, ele disse que nesse caso também iria embora, pois isso
seria uma desconsideração. Tive um imenso trabalho para convencer o
ministro que maior desconsideração seria eu ter que reconhecer ao doutor
Oswaldo que não cumprira o compromisso que assumira com ele.
Ao contrário do que disse o senhor Luiz da Silva, vosso antecessor,
Oswaldo Cruz não “criou a vacina da febre amarela para salvar a
humanidade”, ela só foi criada em 1937, vinte anos depois de sua morte. O
que ele fez foi trabalhar a partir da relação entre o mosquito e a
moléstia, estabelecida há décadas por um pesquisador cubano.
Lembro-lhe que a nobiliarquia médica duvidava da descoberta. O doutor
Oswaldo era um homem minucioso, tinha uns diários de bolso ingleses onde
anotava até os espetáculos que via. Seu grande mérito estava na
organização e na habilidade para desprezar picuinhas e hostilidades
políticas.
Não preciso contar que a Câmara relutou em liberar cinco mil contos
para seu serviço. Outros médicos brasileiros trabalhavam na mesma linha
que ele, a diferença, permita-me, esteve no ocupante da cadeira em que
está hoje a senhora. Eu governei o país com sete ministros, vosmicê já
teve 99. O Brasil é outro, mas ainda assim não há governo para tamanha
titularidade. (Em 67 anos de Império tivemos só 46 marqueses.)
Ontem o doutor Oswaldo procurou-me, assombrado. Tinha consigo um
exemplar do “The New England Journal of Medicine”, que ele diz ser
sério. Ali há um artigo de treze médicos intitulado “Zika Virus
associated with microcephaly”. Em outubro passado perceberam-se
anomalias no feto de uma gestante de 25 anos.
Ela viveu no Rio Grande do Norte, mas o que levou o doutor Oswaldo à
tristeza foi o fato de o artigo ter sido escrito por médicos eslovenos,
pois todos os exames e pesquisas foram realizados num hospital de
Ljubljana. A jovem interrompeu a gravidez voluntária e legalmente no
oitavo mês.
Ontem, o Afonso Arinos soube que eu estava escrevendo esta carta e
sugeriu que lhe recomendasse a minha biografia escrita por ele. Se a
senhora quiser, pode lê-la nessa coisa que chamam de internet. De
qualquer forma, pode pedir um exemplar de papel ao bisneto do Afonso, o
Bernardo Mello Franco.
Sem mais, reitero: não procure um Oswaldo Cruz, ache-se.
Respeitosamente,
Francisco de Paula Rodrigues Alves, conselheiro do Império e presidente da República
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