sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

JÁ QUE...

por Emanuel Medeiros Vieira

   
   Já que não posso vê-lo mais, busco um livro que ele amava quando era pequeno,
   É aqui que envelheço, lembrando de antigos abacateiros, pitangueiras e mangueiras. 
   Escrevo para quem sabe que vai morrer.
   O que espero? Já escrevi  tudo o que precisava?
  Não, não contaria a ele sobre o câncer – a “tristeza das células”, segundo Jayme Ovalle.  
   Ele não merecia mais uma notícia ruim. Ruim? É da humana lida. Saudades? Sim. Sentia muito. Soaria pomposo, faria “filosofia” e não ficção se falasse em dessacralização do real, ou de que nada mais importa, tudo se evapora, nada fica, mesmo as palavras de um sábio caem no vazio? O pensamento profundo, como pensava George Steiner,  nasce de uma “necessidade de transcendência”. E que transcendência há nesse mundo?
   Ficção ou ensaio? Ensaio o ficção? Tudo misturado. Não são fáceis as palavras na velhice.
   “O mundo, livre de Deus, foi sendo aos poucos dominado pelo diabo, pelo espírito do mal, pela crueldade”. (...)
   Vejamos o universo à nossa volta, e aquele menino, agora adolescente que eu não poderia ver. Um menino anônimo no meio do culto pela fama, pelo prazer instantâneo, pelas “redes sociais” que demonizam quem pensa diferente.
   Pós- cultura, pós-verdade, e necessitamos de algo que já não sabemos definir.
   Seria Deus na soleira da porta?
   É a “sociedade do espetáculo”, como definiu Guy Debord.
   Mas queria falar sobre o menino – quase-adolescente.
   Que tanto amei.
   Estou sentado em cima de fragmentos, de memórias, de guerras, de torturas, de pesadelos.
   Eu sei e já disse: tudo é veloz, e é aqui que envelheço. É um mundo apenas financeirizado, da hegemonia da competição, e onde não sabemos mais distinguir o que é verdade do que é mentira. Levara o menino em parques, circos, colhemos  goiabas.
   Nesse mundo – outros já o disseram – as coisas (mercadorias) passaram a ser os verdadeiros donos da vida.
“O espetáculo, afirma Debord, “é a ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna” – lembrado por Vargas Llosa em “A Civilização do Espetáculo”.
   Onde estão aqueles velhos domingos em que eu saía com o menino? As categorias que falam em “otimismo” ou “pessimismo” não entram na mente daquele que escreve visceralmente, por funda necessidade. Os domingos? Nos porões da memória, E a memória foi ficando a alma do humano – ou de que é humano para mim.
   Eu sei, eu sei. Repito Terêncio: nada que é humano me é estranho.
   Mas deste amor, menino, eu não abdico, até chegar à Terceira Margem do Rio. Menino.
(Salvador, fevereiro de 2017)

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