O núcleo da questão social hoje seria, pois, novamente, a existência de “inúteis para o mundo”, de supranumerários e em torno deles, de uma nebulosa de situações marcadas pela instabilidade e incerteza do amanhã que atestam o crescimento de uma vulnerabilidade de massa. (Castel, Robert. As metamorfoses da questão social, 1998, p. 593)
O governo Michel Temer retoma o discurso do infortúnio para os trabalhadores em relação aos direitos sociais garantidos na Constituição de 1988, vulgarmente conhecida como Constituição Cidadã, tendo em vista que assegurava ampliação da cidadania usurpada no período ditatorial.
O impacto das lutas sociais travadas por movimentos de trabalhadores urbanos e rurais, colocadas no centro da construção da sociedade brasileira em transição democrática, que buscava resgatar a dívida social que desconcertava as elites dirigentes era evidente. Os meios de representação institucional diante do aprofundamento da crise econômico-social, espelhado na pobreza urbana e rural eram visíveis a todos os grupos e classes sociais. A desigualdade social e os novos padrões de mobilidade e de conflito social promoveram o confronto entre a velha forma de requisitar direitos, notadamente o sindicalismo tutelado pelo modelo getulista, o peleguismo foi superado pelo sindicalismo de combate, orientado pelas lutas com a participação das bases. Essa agitação proporcionou um redesenho institucional no marco legal-constitucional ampliado, com inegável progresso na defesa de direitos sociais.
A vanguarda do movimento sindical, alicerçada em movimentos sociais de caráter progressista forjou o modelo de “welfare state” tupiniquim, com nuances corporativistas manifestos na Carta Constitucional de 1988. Como afirma Carvalho (2010:223): “Apesar das críticas à CLT, as centrais sindicais dividiram-se quanto ao imposto sindical e à unicidade sindical, dois esteios do sistema montado por Vargas. Tanto o imposto como unicidade foram mantidos. Os funcionários públicos conseguiram estabilidade no emprego. Os aposentados conseguiram o limite de um salário mínimo nas pensões, os professores conseguiram aposentadoria cinco anos mais cedo, e assim por diante.”
Esse legado de mudanças e cidadania tutelada sofreu transformações a partir da década de 1990, auge da reestruturação produtiva e globalização econômica, momento de nova crise econômico-social que marcaram a implementação das reformas neoliberais propostas no “Consenso de Washington”. O movimento sindical entra em mutação, o sindicalismo de combate pela base, que promoveu “ondas grevistas” com ganhos substantivos para as categorias de trabalhadores mais organizadas sucumbe diante do “sindicalismo de resultados” pautado no conciliarismo de classe.
A estabilização da economia brasileira iniciada em 1994 sob a batuta de FHC, com políticas de clivagem neoliberal potencializariam o enfraquecimento da representação sindical , principalmente no âmbito das organizações vinculadas as estatais e funcionalismo público federal. O auge da quebra do sindicalismo de combate foi a famosa greve dos petroleiros de 1995.
O ano de 1995 marcou um novo turno de mudanças na legislação trabalhista brasileira. A Constituição de 1988 representou a restauração de direitos e deu uma autonomia relativa ao movimento sindical, mantendo, no entanto uma forte presença do Estado na regulação das relações entre capital e trabalho, as mudanças ocorridas entre 1995 e 1999 foram voltadas para a flexibilização dos direitos plasmados na Consolidação das Leis do Trabalho. Uma convergência de fatores possibilitou criar as condições para essas mudanças, decorrentes das mudanças no ambiente macroeconômico e suas consequências no mercado de trabalho. Desde meados de 1995 a questão do desemprego vem ganhando crescente centralidade na agenda política brasileira, ocupando grandes espaços na imprensa nacional, e configurando-se como peça chave das pautas de mobilização sindicais e como referência obrigatória na retórica governamental e empresarial. Paralelamente, deu-se o incremento do trabalho de menor qualidade, consequência direta do fechamento de postos de trabalho na indústria, setor que tradicionalmente gera empregos melhor remunerados e de maior produtividade, e que concentra os empregos registrados legalmente.
No bojo da conjuntura de mudanças liberalizantes, a dinâmica societária cada vez mais complexa, heterogênea e diferenciada, supõe que, na democracia representativa, a construção das “regras do jogo” se ampliam para além dos combates cotidianos, sendo construídas no interior de uma racionalidade formal de ordem constitucional, mediadas nos espaços públicos onde são negociadas as questões pertinentes a esfera da lei e das instituições. Uma sociedade na qual as relações sociais são mediadas pelo reconhecimento de direitos e representação de interesses, de tal forma, que se encontre uma linha de conduta (directum), na regula (régua) ou na norma (esquadro) latina, como afirma Suppiot(2007).
Por outro lado, a superação do período de reformas neoliberais de FHC, a ascensão de Lula como Presidente que representaria a “esperança” de mudanças em prol dos trabalhadores, a dubiedade da política econômica determinou clara limitação da política social no que denominou Oliveira (2007) com “hegemonia às avessas”, ou seja, “os dominantes aceitam ser conduzidos politicamente pelos dominados. Desde que não sejam contestados.” Assim, os dois mandatos de Lula, e, posteriormente o de sua sucessora, foram exercidos pela força do mito, com renúncia de combater as causas estruturais dessa desigualdade, incorporando plenamente suas ações em favor da adaptação à “ordem econômica mundial”, com subordinação das políticas sociais flexibilizadas e residuais, ainda que, a precarização e informalização no mundo do trabalho continuassem se elevando. Esse modelo liberal periférico e suas políticas sociais, consequentemente são observados em diferentes dimensões para os trabalhadores – desregulamentação, mudanças da legislação trabalhista, diferentes formas de contrato, jornadas móveis de trabalho, salários flexíveis, multifuncionalidade e polivalência, implicando na precarização periférica com altas taxas de desemprego e informalidade.
O movimento sindical ficou à mercê de governos liberais e progressistas no período de transição democrática que se encontra no marco divisor na atualidade. A agenda de reformas no governo transitório de Michel Temer é entoado como “mantra” para o Brasil retomar o seu potencial de crescimento sustentável, como uma agenda regressiva que colocará em xeque a representatividade dos movimentos sociais tradicionais, nestes, os sindicatos, federações e confederações. As principais centrais sindicais CUT (33,7%), Força Sindical (12,3%), UGT (11,7%), CTB (9,13%), NCST (7,84%) e CSB (7,43%) com representatividade expressiva dos trabalhadores assalariados, distribuídos no universo de 16.429 sindicatos ativos, serão colocadas à prova nesta nova rodada de reformas estruturais. Em parte pela pulverização dos interesses políticos-ideológicos-econômicos em jogo, fruto de ausência de negociações coletivas e unificadas, e, por outro lado, na excessiva informalização do mercado de trabalho, a evidência que a representatividade é restrita. Se a queda da sindicalização é um fenômeno mundial, no caso brasileiro, é potencializado pela pulverização classista, falta de representatividade e altíssimo nível de informalidade do emprego dos brasileiros.
As sucessivas emendas constitucionais para adequação da estrutura legal-constitucional no cenário de crise conjuntural da economia brasileira transformaram a Constituição de 1988, num trapo legal, com diversos retalhos que evidenciam o quanto o cobertor ficará curto para os trabalhadores. A destruição do Sistema de Seguridade Social amparado no regime de assalariamento está em risco para o futuro da sociedade brasileira. O descrédito de partidos, casas legislativas e processos eleitorais, o enfraquecimento dos sindicatos significam uma reviravolta nas conquistas sociais e alargamento da cidadania. Daí, o governo Temer, os agentes econômicos e grande mídia, apressaram os pacotes de reformas estruturais sem nenhum rodeio. O sistema financeiro nacional/internacional, o grande empresariado nacional associado ao capital global entoa “menos Estado, mais mercado” com urgência. Afinal, como diz aquele velho adágio popular “tempo é dinheiro”, o capital não dorme. A ofensiva do temeroso governo de transição, impondo rapidamente a reforma previdenciária e trabalhista, é o tom sintomático de tempos sombrios que políticos falam em “cortar a própria carne” e acabam mesmo é “cortando até os ossos dos trabalhadores”, tudo em prol da melhoria do ambiente de negócios.
Durante a greve de maio de 1995, os petroleiros resistiram às manipulações e repressões do governo e à campanha escancarada da mídia para tentar jogar a população contra a categoria. Milhares de trabalhadores foram arbitrariamente demitidos, punidos e enfrentaram o Exército, que, a mando de FHC, ocupou com tanques e metralhadoras as refinarias da Petrobrás. A FUP e seus sindicatos foram submetidos a multas milionárias por terem colocado em xeque os julgamentos viciados do TST, que decretou como abusiva uma greve legítima e dentro da legalidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário