segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

CRUCIFICADO (Memória)



 por Emanuel Medeiros Vieira

Em memória do José: meu irmão e padrinho de Batismo. Em memória de Luiz Travassos (com quem tentamos e outros éticos companheiros), refundar –ou deixar as sementes– de uma nova “esquerda”: democrática e humanista (já na década de 60)

Óculos de sol quebrado. Vetor desenho de vetor e ilustração royalty-free royalty-freeTerá valido a pena o sacrifício do Crucificado?
Outrora, agora – sempre?
Na sala não muito grande, papéis na mesa.
Havia uma “cadeira do dragão” (lembrava os antigos assentos de barbeiros, pesados e de madeira, com uma cobertura de zinco, ligada a um regulador de  voltagem): sentiam-se os choques no corpo inteiro, e era muitofácil um cardíaco morrer ali – o instrumento era mais utilizado, quando o interrogado não falava “apenas” com choques elétricos nas mãos, no pênis etc,)
 Passara o ritual (para mim foi o primeiro) dos choques nas mãos, nos ouvidos e o “telefone”: tapas com as mão s abertas no dois ouvidos).
O militar sem farda olha o Crucifixo na parede.
E diz: “Pede para Ele”.
Olho: o militar sem farda, o Crucifixo.
“Pede para Ele” – insistiu.
Ele cortava as palavras, abolia sujeitos, predicados, verbos: só interessava a eficácia (a lógica do Processo).
O homem sem farda queria que eu apelasse ao Crucificado para que a “cadeira do dragão” não fosse ligada – que fosse cessada a tortura (mas essa palavra eles não gostavam de usar).
“Ele Te Salvará?”, perguntou com sorriso cínico.
Cristo quieto na parede.
O homem musculoso ligou a máquina: gritos, mais gritos – só  gritos.
Ouviam-se berros vindos de salas vizinhas. As celas eram no térreo.
Um minuto (creio) parecia uma hora, ou a eternidade toda.
(Eu sabia: deste lugar-comum, eu não conseguiria escapar.)
Por que não morrer?
Eram equipes diversas: entrava uma, saía outra.
Eles enxugavam-se com toalhas.
Quem me interrogava agora  tinha cabelo escovinha.
Quanto tempo  aguentarei?
O Crucificado continuava em silêncio.
Escutei barulho de carros, pneus rangendo.
Alguém – me informaram – havia morrido.
O médico calculara mal.
Havia um médico e o chamavam de vez em quando.
Ele pega um aparelho e, curtamente, dizia: “Esse aguenta mais um pouco”.
“Esse está no limite”.
Um guarda no térreo (eu estava no primeiro andar) berrava eufórico: gol do Corinthians.
Operação Bandeirantes OBAN (Operação Bandeirantes), Rua Tutóia, Bairro Paraíso, São Paulo.
Departamento  de  Operações de Informação (Doi)
Centro de Operações de Defesa Interna (Codi).
Sim: o bairro chamava-se “Paraíso”.
Havia alguns homens com fardas, fios ligados e aquela cadeira enorme.
(Não, não era tão grande assim. Agora me parece. Faz 48 anos.)
“Um cardíaco já morreu aqui”, contou chefe deu uma equipe.
A quem mais odiavam?
Prestes e Lamarca: vieram de suas entranhas – o Exército..
Textos meus em cima da mesa.
Um panfletário e violento artigo contra a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto (1950-1968), assassinado pela Ditadura  no “Calabouço”, no Rio de Janeiro.
Escrito no jornal do “Centro Acadêmico André da Rocha” – Faculdade de Direito da UFRGS.
Eles só pediam um nome: de alguém que estava fugindo para o Uruguai,  mas eu calculava: ainda não chegado lá.
Era preciso aguentar mais um pouco.
Não sei se conseguiria – estava um bagaço. Pensava: eu já estava morto? Me levaram para a cela, sentia-me cego, sangue escorrendo por todo o lado e – sempre há um pior que o outro – um agente jogou um  balde d’água no meu corpo..
Havia na cela, mais um sete ou oito presos.
Alguém improvisou um curativo .para mim. Queria ter guardado o seu nome.
Na transferência da OBAN para o DOPS – 19 de dezembro de 1970 , pessoas faziam compras de natal.
“Saiam da frente”, são terroristas”, gritavam os agentes, e as pessoas nos olhavam horrorizadas.
 Um agente (naquelas caminhonetes), no transcurso da OBAN para o DOPS, disse: “Não temos nada contra vocês. Se a revolução de vocês ganhar, pagando bem, a gente bate também naqueles que vocês mandarem”.
Feliz natal!*
*Não ia inserir no texto acima: pareceria, com razão, inverossímel.
Acreditem: certa vez, quando estava sendo torturado, lembrei de T.S. Eliot (1888-1965): (... ) “Mas aquilo que apenas vive/Pode apenas morrer (...)
Lembrar-se de versos na  hora da pancada, soará inverossímil.
(Mas foi o que me salvou.)
O Crucificado? Eu não sei Ele ainda está lá, se existe aquela sala, se aquilo tudo foi demolido, se as pessoas que estavam comigo na cela já morreram, como os torturadores– para que serve  aquela construção agora?
Pude dizer o nome que eles queriam:  ele já havia chegado o Uruguai.
Como sabia?  A gente sabia.
Para eles, eu agora era um trapo inútil, mas com processo nas costas, e eu precisava continuar  a viver.
Repito: faz 48 anos.
(Anos mais tarde, ouvi Vandré e Gardel, lembrando-me daqueles dias de minha juventude (a minha:  com 25 anos).
Não sei até por que resolvi o ouvir Gardel?
O Crucificado? Perdi-o de vista. Talvez esteja numa igreja velha.
(Salvador. Bairro da Graça. Janeiro de  2018)


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