por Emanuel Medeiros Vieira
Em memória do José: meu irmão e padrinho de Batismo. Em
memória de Luiz Travassos (com quem tentamos e outros éticos
companheiros), refundar –ou deixar as sementes– de uma nova “esquerda”:
democrática e humanista (já na década de 60)
Outrora,
agora – sempre?
Na sala não
muito grande, papéis na mesa.
Havia uma
“cadeira do dragão” (lembrava os antigos assentos de barbeiros, pesados e de
madeira, com uma cobertura de zinco, ligada a um regulador de voltagem): sentiam-se os choques no corpo
inteiro, e era muitofácil um cardíaco morrer ali – o instrumento era mais
utilizado, quando o interrogado não falava “apenas” com choques elétricos nas
mãos, no pênis etc,)
Passara
o ritual (para mim foi o primeiro) dos choques nas mãos, nos ouvidos e o
“telefone”: tapas com as mão s abertas no dois ouvidos).
O militar
sem farda olha o Crucifixo na parede.
E diz: “Pede para Ele”.
Olho: o
militar sem farda, o Crucifixo.
“Pede para
Ele” – insistiu.
Ele cortava
as palavras, abolia sujeitos, predicados, verbos: só interessava a eficácia (a lógica do Processo).
O homem sem
farda queria que eu apelasse ao Crucificado para que a “cadeira do dragão” não
fosse ligada – que fosse cessada a tortura (mas essa palavra eles não gostavam
de usar).
“Ele Te
Salvará?”, perguntou com sorriso cínico.
Cristo quieto na parede.
O homem
musculoso ligou a máquina: gritos, mais gritos – só gritos.
Ouviam-se
berros vindos de salas vizinhas. As celas eram no térreo.
Um minuto (creio) parecia uma hora,
ou a eternidade toda.
(Eu sabia: deste lugar-comum, eu não
conseguiria escapar.)
Por que não morrer?
Eram equipes
diversas: entrava uma, saía outra.
Eles enxugavam-se
com toalhas.
Quem me
interrogava agora tinha cabelo
escovinha.
Quanto tempo aguentarei?
O
Crucificado continuava em silêncio.
Escutei
barulho de carros, pneus rangendo.
Alguém – me
informaram – havia morrido.
O médico
calculara mal.
Havia um
médico e o chamavam de vez em quando.
Ele pega um
aparelho e, curtamente, dizia: “Esse aguenta mais um pouco”.
“Esse está
no limite”.
Um guarda no
térreo (eu estava no primeiro andar) berrava eufórico: gol do Corinthians.
Operação Bandeirantes OBAN (Operação
Bandeirantes), Rua Tutóia, Bairro Paraíso, São Paulo.
Departamento de
Operações de Informação (Doi)
Centro de
Operações de Defesa Interna (Codi).
Sim: o bairro
chamava-se “Paraíso”.
Havia alguns
homens com fardas, fios ligados e aquela cadeira enorme.
(Não, não era tão grande assim. Agora me
parece. Faz 48 anos.)
“Um cardíaco
já morreu aqui”, contou chefe deu uma equipe.
A quem mais
odiavam?
Prestes e Lamarca:
vieram de suas entranhas – o Exército..
Textos meus
em cima da mesa.
Um
panfletário e violento artigo contra a morte do estudante Edson Luís de Lima
Souto (1950-1968), assassinado pela Ditadura
no “Calabouço”, no Rio de Janeiro.
Escrito no
jornal do “Centro Acadêmico André da Rocha” – Faculdade de Direito da UFRGS.
Eles só pediam um nome: de alguém que
estava fugindo para o Uruguai, mas eu calculava:
ainda não chegado lá.
Era preciso aguentar mais um pouco.
Não sei se
conseguiria – estava um bagaço. Pensava: eu já estava morto? Me levaram para a cela,
sentia-me cego, sangue escorrendo por todo o lado e – sempre há um pior que o
outro – um agente jogou um balde d’água
no meu corpo..
Havia na cela,
mais um sete ou oito presos.
Alguém
improvisou um curativo .para mim. Queria ter guardado o seu nome.
Na transferência da OBAN para o DOPS
– 19 de dezembro de 1970 , pessoas faziam compras de natal.
“Saiam da frente”, são terroristas”,
gritavam os agentes, e as pessoas nos olhavam horrorizadas.
Um agente
(naquelas caminhonetes), no transcurso da OBAN para o DOPS, disse: “Não temos
nada contra vocês. Se a revolução de vocês ganhar, pagando bem, a gente bate
também naqueles que vocês mandarem”.
Feliz natal!*
*Não ia
inserir no texto acima: pareceria, com razão, inverossímel.
Acreditem:
certa vez, quando estava sendo torturado, lembrei de T.S. Eliot (1888-1965): (...
) “Mas aquilo que apenas vive/Pode
apenas morrer (...)
Lembrar-se
de versos na hora da pancada, soará inverossímil.
(Mas foi o que me salvou.)
O Crucificado?
Eu não sei Ele ainda está lá, se existe aquela sala, se aquilo tudo foi
demolido, se as pessoas que estavam comigo na cela já morreram, como os
torturadores– para que serve aquela
construção agora?
Pude dizer o
nome que eles queriam: ele já havia
chegado o Uruguai.
Como sabia? A
gente sabia.
Para eles,
eu agora era um trapo inútil, mas com processo nas costas, e eu precisava
continuar a viver.
Repito: faz 48 anos.
(Anos mais
tarde, ouvi Vandré e Gardel, lembrando-me daqueles dias de minha juventude (a
minha: com 25 anos).
Não sei até por que resolvi o ouvir
Gardel?
O Crucificado? Perdi-o de vista.
Talvez esteja numa igreja velha.
(Salvador. Bairro da Graça. Janeiro de 2018)
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