Para meu pai Alfredo, in memorian, com imensa saudade
(e para meus amigos)
(...) “Mais que tornar o pranto em flor, quisera/
transfigurar do tédio a morna esfera/nesta nuvem de sonhos em que estou./
O que ousara, Senhor, o que desejo/é ser como a canção de um
realejo/tocado pelo cego que não sou”. (Anderson Braga Horta–1934)
“Escrevo. E pronto./Escrevo porque preciso,/preciso porque
estou tonto. (...)
A aranha tece teias ./O peixe beija e morde o que vê./
Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê?” (Paulo Leminski –
1944–1989))
Ele me olhou, olhou de novo, exames em cima da mesa e disse:
“o tumor está aqui”. Um tumor. Na mesa do médico, a foto de sua mulher e de
seus filhos. Eu fui encaminhado a ele. De uma emergência. Era 30 de dezembro de
2014. Despedi-me, desci o elevador. Só no táxi – abrindo a janela do carro,
contemplando ipês roxos que sempre amei, moços e moças saindo de uma escola, pontos
de ônibus cheios, uma menina com um picolé – internalizei, entendi (“caiu a ficha”,
como diz o povo). Mas mesmo “entendendo”, não poderia entender/imaginar como seria
a minha tanto daí em diante. Uma vida?
Sim. Uma vida. Provisória, finita – ironia: um tema que sempre abordei nos
meus livros, em tantos textos avulsos (a
memória, o tempo, a vida e a morte).
Um poema de Samuel Beckett diz: “Cegos como o destino/Nascemos morremos/Sem a noção do tempo”.
Um poema de Samuel Beckett diz: “Cegos como o destino/Nascemos morremos/Sem a noção do tempo”.
Laboratórios sempre, clínicas sempre, exames sempre,
oncologistas sempre. E quimioterapia (Afasta de mim esse cálice). E outros
exames mais complexos e demorados para ver como “anda” o tumor. Aumentou? Foi
para “outros lugares?” Regrediu? É preciso seguir em frente – digo para mim
mesmo (sempre).
E um anjo torto fala com extrema dureza: “Aguenta firme. Sem
queixas. Enfrenta. Não aguentaste outras situações difíceis?”. É verdade.
Meu temor, amigos: cair na autopiedade, na chorumela. Sim. “Evite a autopiedade e autocomiseração”,
ordena o mesmo anjo torto (um promotor interno?). Vim de outras batalhas–
reitero, lembrando as palavras do anjo torto. O que quer dizer isso? Alguém
disse para um amigo: “Ele nunca deixou o Vaticano”. Vaticano? Não seria o
Poder, que nunca amei. Seria o menino sacristão? O adolescente da Cruzada
Eucarística? O jovem da Congregação Mariana? O moço dos colégios jesuítas? Não,
não caí na TFP, mas sim na Ação Popular (AP)... Sofrimentos, processo, tortura? Escolhi o
caminho: não posso reclamar. Era Médici no poder. Amores. E Célia – o amor da maturidade. E
Clarice: sempre luz. Não peço glória. Só disse para a Clarice, quando crescia:
“é uma medalha que carrego no peito, filha”. As marcas, cicatrizes estão no meu
corpo: quando achava que poderia mudar o mundo. Retórico? É assim mesmo. Para um
compadre, mais tarde, disseram que eu era um “udenista tardio”. Ou “moralista”.
Alfredo, meu pai, num sonho, disse que era meu intercessor junto ao Pai. Como
minha mãe, como os irmãos e amigos que já partiram, e que amei muito.
Moralista? Porque sempre considerei a corrupção um crime de lesa-humanidade. De
qualquer forma. Um crime devastador – mesmo que revestido de falsas boas
intenções (pura hipocrisia). Crime contra os sem nada, contra os pequenos,
contra os humilhados e ofendidos da terra (o tom é de tribuno – reconheço que
nunca deixei de sê-lo). E ainda quando praticada – com deslumbramento e
saqueando o país – por gente que “prometeu” mudar as práticas nacionais.
Patrimonialismo, colonialismo, desrespeito ao outro, espírito escravocrata internalizado na alma, privatização do Estado
em favor do de oligarquias. Acusam-se. Os que estavam antes no Poder, e os de
agora. Mas são frutos da mesma costela, das mesmas práticas. Mas não quero
politizar meu texto – só pretendia ser
radicalmente sincero.
Saudades de Jango. Saudade do Dr. Ulysses, que tinha ódio e
nojo à ditadura. Saudades de Tancredo que dizia: “não nos dispersemos”.
Um “guru” disse para outro amigo: “O que o salvou foi um
Guardião. Se não fosse Ele, já estaria morto”.
Referia-se a mim. Guardião? Seria São Miguel Arcanjo? Remei contra a
corrente, filha. É da vida. Biblicamente, diria: A quem muito foi dado, muito
será cobrado.
Acredito/não acredito.
E agradeço. Bênção: esta vida. Também iluminação. Não dobrei
a espinha. Apanhei na ditadura e, metaforicamente, bateram para valer nos anos
recentes. Inveja, dissimulação. Eu sei
quem são eles. E vi o que foi
feito de um “projeto”. Sempre do contra? Viva a literatura! Houve calhordas – e
crueldade? Houve. Mas também muitos
amigos. E o amor.
“Viva a cada dia como se fosse o último e, um dia você
estará certo”, diz o (a) personagem Jeannie Berlin, do filme “Café Society”, de
Woody Allen (1935).
Lembro do (a)
personagem de Jean-Luc Godard )1930), em “Acossado” (“À Bout de Souffle”), de 1960, interpretado (a) pela
eternamente bela Jean Seberg (1938–1979), perguntando a outro personagem: Qual é sua
maior ambição (sonho – algo assim): “Ser
eterno e depois morrer”.
Viver. Morrer.
“Quando morrer o vento continuará ventando”, disse Eduardo
Galeano (1940–2015).
O dramaturgo Edward
Albee (1928–2016) afirmou: “Percebo que muita gente gasta o maior parte do
tempo vivendo como se não fosse morrer”.
Há um ano, oito meses e vinte e dois dias, tenho o “inimigo
íntimo” dentro de mim. O tal do tumor. Vou
em frente.
Então, o Guardião, dirá: “vem comigo. É a tua hora”. E,
diante da Indesejada das Gentes, ainda quero abraçar o meu Guardião e todos aqueles
a quem amo e amei. É assim. Pessimismo? Creio que não. Seguir em frente – sempre (já afirmei aqui). Será assim?
(Brasília, setembro de 2016)
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