Em memória do meu sempre querido
amigo, talentoso escritor, ser humano
íntegro em tempos tão reificados e
quebrados - sem adequação entre ser e destino
(com transcrições do "Livro do Desassossego",
de Fernando Pessoa).
quebrados - sem adequação entre ser e destino
(com transcrições do "Livro do Desassossego",
de Fernando Pessoa).
Não espero que o futuro também perdure.
Relevem – que seja um só leitor –, os lugares comuns e
platitudes.
Existirão “passado”, “presente”, “futuro”?
O passado esfarelou nos dedos.
O presente acaba de passar.
O futuro é uma folhinha
tirada da parede.
Resta-me esta segunda-feira, a memória de um querido amigo
morto no sábado, neste funesto fevereiro, a foto perdida na mesa, eu, o amigo
morto, outro alguém que já está longe.
Éramos todos jovens.
Estou em Lisboa, sozinho, inverno europeu de 1975, 30 anos, fugindo
da ditadura militar brasileira, no bar (ou restaurante, qualquer coisa) onde Fernando Pessoa tomava os seus tragos.
Vivíamos o rescaldo da Revolução dos Cravos.
Havia ganho o disco com
a música da esperança (“Grandôla Vila Morena”).
A gente deixa muita coisa quando foge de uma ditadura – eu não pude levar obras de Franz
Kafka, Graciliano Ramos e outras.
Na mesa, um trago forte e “Mensagem” do mestre – e alguns poemas eu lia um pouco alto,–aliás,
nem alto, nem baixo – um vizinho escutaria.
“Sou, em grande parte,
a mesma prosa que escrevo.” (Fernando Pessoa – heterônimo: Bernardo Soares).
E diz – “Que me pesa
que ninguém leia o que escrevo: Escrevo-me.”
Ele estabelece desde
cedo o princípio: “Dizer o que sente
exatamente como se sente plenamente”.
(Poço sem fundo é
esse passado que não passa – mais fundo ainda é o país de cara feroz com seus
açoites para os desdentados à margem da
margem – a eterna desigualdade, o espírito escravocrata estampado eternamente
na nossa cara.)
Mas, com toda a
sinceridade - só peço que acreditem –, não quero fazer sociologia
de boteco.
Os poucos amigos que me lerem – nossos
textos, é claro, sempre ficam aquém da nossa expectativa – perguntarão
porque “entrou” Fernando Pessoa numa homenagem a Rubem Mauro Machado.
Talvez porque na
madrugada toda insone – noite eterna – , eu só tinha fragmentos, pedaços/estilhaços de memória, viagens,
tempos, idade – uma enorme amizade que começou em 09 de fevereiro de 1970 em
São Paulo, o “rabo-de-foguete”
(apartamentos pobres, pensões pulguentas) no ar, clima pesadíssimo, depois
fuga, prisão , tortura, exílios, estórias tão conhecidas, que muitos não querem
lembrar.
Quarenta e oito anos
de amizade: contínua sem interrupção.
“O que é o tempo? Se
ninguém me perguntar, eu sei; porém, se
quiser explicar a quem me fez a pergunta já não sei” (Santo Agostinho, 354-430).
“Toda a literatura
consiste num esforço para tornar a vida real. (...) A vida é absolutamente
irreal. (..) Que me pesa que ninguém leia o que escrevo: Escrevo-me”.
(Fernando Pessoa,
“Livro do Desassossego”).
Nos obituários, os
elogios viraram lugares-comuns, todo mundo vira santo.
RUBEM MAURO MACHADO (25
de outubro de 1941/02 de fevereiro de 2019) foi das pessoas mais íntegras solidamente éticas que conheci.
Nos conhecemos em 9 de fevereiro de 1970.
Ele nunca sonegou os seus valores ou fez conchavos para negar seus ideais. Quem o conheceu sabe disso, e era de uma generosidade ímpar.
Quando morwi em Florianópolis, com processo político nas costas (1972-1979), ficaste la em casa, me visitaste umas cinco vezes (seis, sete?).
Nestes 40 anos de Brasília, vieste três vezes?
Era direta, às vezes diária.
NA ÚLTIMA VEZ EM ABRIL DE 2018, VIESTE ME VISITAR – ERA A
SOLIDARIEDADE DO AMIGO QUERIDO: EU COM CÂNCER INCURÁVEL (QUE JÁ DURA QUATRO ANOS, UM MÊS E SEIS DIAS).
NO DIAGNÓSTICO (30 DE
DEZEMBRO DE 2014) O PRIMEIRO MÉDICO ME
DEU SEIS MESES DE VIDA.
ESTOU NO LUCRO...
ALÉM DISSO, RUBEM MAURO HAVIA GOSTADO MUITO DE UM TEXTO MEU (“CRUCIFICADO”), DIRETAMENTE SOBRE TORTURAS SOFRIDAS NA OBAN E NO DOPS – UMA- TENTATIVA DE ABORDAR UM TEMA SEM PANFLETARISMO OU AUTOPIEDADE. TRABALHAMOS
JUNTOS, LEVASTE PARA O RIO E IRIAS ENVIAR DE VOLTA A TUA VERSÃO.
FIZESTE PRECIOSAS SUGESTÕES..
ESTAVAS TRABALHANDO NISSO, COMO SEMPRE COM INTEIREZA,
PROFUNDA DEDICAÇÃO QUANDO VEIO A INDESEJADA DAS GENTES EM 2 DE FEVEREIRO - QUE AINDA NOS ABALA TANTO AGORA.
PERDI UM IMENSO AMIGO.
QUERO HONRAR A TUA MEMÓRIA E O TANTO QUE FIZESTE NO TEMPO QUE
ME CABE.
TU E O TEU IRMÃO
MILTON SALDANHA MACHADO SÃO FIGURAS RARÍSSIMAS NUM TEMPO TÃO EMBRUTECIDO, CÍNICO,
DESIGUAL E CONSUMISTA.
SEMPRE DIZEMOS: “É
PRECISO CONTINUAR”.
SIM. NÃO É FÁCIL,
RUBEM MAURO MACHADO E OUTROS HUMANISTAS (EM TEMPO INTEGRAL) QUE TAMBÉM JÁ
PARTIRAM.
CREIO QUE AINDA
ARRUMAREMOS FORÇAS – ONDE ELAS ESTIVEREM, MESMO NO DESERTO, PORQUE JÁ
DESCOBRIRAM QUE ELE É FÉRTIL – PARA
RESISTIR, PARA O QUE O NÚCLEO DO HUMANO
NÃO DESAPAREÇA.
(Brasília, fevereiro de
2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário