segunda-feira, 15 de abril de 2019

"CONJUNTO NACIONAL"

conto de Emanuel Medeiros Vieira
 (aos que vieram para Brasília na década de 60)
Para minha filha Clarice Vieira Smejkal (que chegou mais tarde no Planalto Central do país, em 22 de agosto de 1986 -m exatamente 10 anos após a partida do criador de Brasília, Juscelino Kubitschek de Oliveira (22 de agosto de 1976), e cinco anos depois da ida de Glauber Rocha, em 22 de agosto de 1981)


    Vestir uma roupa melhor. Domingo de manhã. Cheiro de terra, de obra, de graxa, de óleo, ônibus aos pedaços. Tudo por fazer. Ônibus?
Não. Estradas, “picadas”, eram abertas de noite para o dia, como restaurantes. Postos de gasolina, e viu perto de sua pensão. “Leio o seu futuro”., ronco de caminhões, todos os tipos de condução – , chegando de todo lugar. Não, ele não era pioneiro. Queria ganhar dinheiro com a nova capital – mesmo com bichos, onças, cobras, lobos-guarás.
”Escapem das cobras”, alertavam os chefes. Poucas vacinas.
Faltava mulher. Começavam a chegar em conduções precárias, principalmente vindas do Nordeste .
Alguns pregadores também surgiam, falando sobre o fim do mundo e, com uma boa conversas, faziam preços mais baratos.
(Velho, uns 50 ou 60 anos depois, colho fragmentos, como nos filmes que - a maioria, faroestes - que exibíamos aos domingos à tarde
Recupero só a imagem, nunca a sensação.
É a impossibilidade intrínseca da escrita.
Escrevo porque não posso viver mais o que vivi. Só lembrar.
Alguém frita linguiças e carne de sol. Pinga nunca faltava
Lembrava de todos que vieram tentar a sorte no começo da nova capital.
Domingo que vem...
Um quartinho na Cidade Livre (início de Brasília; hoje Núcleo Bandeirante). Qualquer emprego servia.
Construíam o primeiro shopping.
“Conjunto Nacional”. Diziam que havia vagas.
Estávamos perto dos 20 anos.
Do Nordeste, vinha mais pau-de-arara, caminhões.
Um perfume barato comprado em algum lugar.
Visitar o Conjunto antes de tentar trabalhar lá.
Fazer o quê no domingo?
Ver o Conjunto Nacional em construção.
E descobrir uma cidade começando.
Vinda do nada.
“Tudo vinha do nada” – pensei.
Todos queriam começar, ganhar dinheiro, uns com espinhas no rosto– quase meninos ainda.
Uma nova vida. Juscelino estava esperançoso.
Estávamos bem arrumadinhos para o passeio domingueiro.
(A cidade nunca será “deles”, desses que chegam nesses caminhões velhos. Surrupiados, afastados, enganados, com Golpe, cassetetes e tramoias.)
“Isso não e ficção”, diz um anjo torto. Sim, não é.
Domingo de manhã.
Encontrar uma morena bonita.
Camisa nova, cabelo bem penteado.
E se desse certo?
Construir uma família, não morrer, e que nenhuma árvore caísse em cima de ti, nenhum bicho bravo te mordesse. Uma casa boa.
A morena bonita toma um sorvete. Eu e meu colega observamos. Ela parece tão feliz com aquele sorvete. Para ela, o sorvete é o mundo, o paraíso, tudo.
Saímos anjos tortos assim? Há razão para isso – purgatório?
Tantos tentavam a capital mais nova do mundo.
E não sei a razão de me lembrar da Grécia.
Um beliche, um espelho.
Iria escrever para casa:
“Mãe : acho que vai dar tudo certo”.
Aos 20 anos, era otimista.
Era?
(Brasília no início: esperança de tantos.
Nada parado, tudo em movimento.
Olhava a terra vermelha, mais caminhões chegando, muita esperança nos rostos.
Na verdade: eu não sabia bem o que queria.
Vagar no mundo? Me estabelecer?
E FOGUETES, ESPERANÇAS, FOGOS DE ARTIFÍCIO: O CONJUNTO NACIONAL FOI INAUGURADO EM 21 DE NOVEMBRO DE 1971.
Era uma utopia.
Como um jogo de bilhar: não distopia.
Nos finais de tarde, em barracões, os candangos bebiam.
Mosquitos, redes, beliches – e alguém pega uma violão com saudades de casa.
O domingo acabava, apenas uma sombra de sol no Planalto Central – havia agora mais silêncio (que não sei definir), estávamos longe de casa, nova semana, terra vermelha, capital da esperança.
(BRASÍLIA, MARÇO E ABRIL DE 2019)

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