terça-feira, 19 de julho de 2016

TARCÍSIO

Bebemos vendados da taça/da vida enquanto/lavamos seu ouro sem jaça/com nosso pranto./A venda desfaz-se, porém, antes da morte, e o que nos seduzia tem a mesma sorte,/Vazia, a taça então revela/seu nada insosso:/bebíamos sonho que, nela, nem era nosso!”
(Mikhail Liérmontov (1814-1841) - “A Taça da Vida”

  
Irmãos
por Emanuel Medeiros Vieira  
   Havia campinhos, verdes. Chácaras. Brincávamos. Sim, Tarcísio, era outra ilha. Não me escutas. É apenas uma carta que não foi enviada e que não poderá mais ler. Lembras dos nossos  passeios no Parque da Redenção (não o espaço degradado de hoje)?, das idas às ilhas do Guaíba? Dos belíssimos faroestes que assistíamos juntos? (Quando já vivíamos em Porto Alegre.) O dinheiro sempre curto, mas éramos jovens e podíamos tudo. Onipotentes, a Indesejada das Gentes não passava pela nossa cabeça.

MUITO MAIS QUE IRMÃOS, FOMOS SEMPRE AMIGOS – sempre.

   Terei te dito em vida? Não é  aquela apologia que (quase) sempre)  se faz aos que morreram. É algo mais fundo, visceral. Como um pedaço de mim (outro) que se vai. Parecerei piegas? Mas muita gente que amo tem ido embora. Não dá para internalizar um luto: e lá vem outro.  Posso contar nos dedados, um ser humano tão carregado de compaixão, de espírito “franciscano”, de generosidade, de humildade, de ternura – como tu, hermano. Sempre foste muito bem informado e lias muito.. Eras  forte, mas defendias teus pontos de vista com extrema dignidade, sem ofender.
   
   Quando te vi pela última vez, há mais de ano, com  Célia e Júlio Cesar, na “tua Brusque” (e do César também), teus cabelos estavam brancos.

   Pelas fotos que me mostraram depois, os cabelos estavam ainda mais branco e informaram que a tua saúde piorara.
Ligavas sempre para saber da minha enfermidade.
Um dia disseste: “O que posso fazer por ti, meu irmão é orar”. (O maior presente que “sinto” – a maior dádiva que alguém pode me ofertar.)

   Numa das vezes que ligaste, foi numa segunda-feira, na manhã seguinte ao Dia das Mães: informaste que não irias visitar o cemitério, onde repousava a tua Rut (um casamento forte de 52 anos). Mas tua neta Bruna, havia comprado uma rosa. E lá foste visitar a Rut.

   Estarei sendo sentimental demais?  Hoje vocês dois estão juntos e deixaste este buraco enorme. Tua partida foi exatamente quatro meses após a morte da mulher que amaste.

   Apesar de todas as lutas (não fáceis), papai e mamãe nos deram uma família unida.  É claro que havia uma proximidade grande – como dizer? – mais de “pele”, por sermos os últimos: eu, Miriam, tu, Cida. E assim foi conosco.
Tenho escrito tanto sobre os mortos, falado em cerimônias fúnebres, que parece que nada mais tenho a dizer. Não sei.    Te amei muito, meu irmão.
   
   Alguém já disse que a vida é mais dura para os que não se amansam. Outra pessoa, afirmou que só com o tempo aprendemos a não lamentar o que perdemos.
(Eu indago: conseguimos?). Então, aprenderemos a ser gratos pelo que tivemos.

   Solidário, firme nas suas convicções, generoso e justo. Assim era o Tarcísio. Mas muito mais. Nunca entenderemos inteiramente o que é ou foi um ser humano.
   Não importa. A Indesejada das Gentes tem dado muitos sustos. Nunca saberemos. (E num domingo, pelas nove da manhã, toca o telefone e o teu primogênito Rubens Alfredo informa que tinhas ido embora (para sempre), que não estavas mais aqui. Era 19 de junho e a partida foi às sete da manhã.) Que doídas sete horas da manhã de um domingo da vida.

   O que fizemos, permanece. A eternidade será isso? A memória colada na pele. Estás e estarás sempre conosco, meu querido e inesquecível irmão Tarcísio
 (Releva os lugares-comuns. Só queria escrever uma carta a um irmão muito amado que não está mais aqui. Meus queridos compadres Lídia e Paulão te mandam um abraço grande. E Clarice e Célia te beijam – com saudade.)

   É preciso acreditar que o que nos resta é a palavra. Que ela ficará.
(Brasília, julho de 2016)

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