terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Rumo à estação Somália

por Carlos Nina*

Gostaria de esquecer uma advertência que é recorrente em minha memória. Mas não posso – nem devo – porque foi profética. É um antídoto contra discursos de quem tenta eximir suas próprias responsabilidades, esconder sua parcela de culpa pela omissão, quando não pela conivência ou, no mínimo, conveniência.
Foi do querido Miguel Seabra Fagundes, que foi Ministro da Justiça (Governo Café Filho), presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto dos Advogados Brasileiros. Em entrevista publicada no Boletim Informativo do Conselho Federal da OAB, em julho de 1972, disse MSF:
“... a superação dos tempos de arbítrio, das prisões violentas, das torturas, das invasões de domicílio, da supressão da paz na sociedade civil, em nome da segurança nacional, não perempto o papel atribuído à OAB de guardiã da ordem jurídica, que assim lhe foi cometido pelo art. 18”, atualmente art. 44, I, do Estatuto.
Citei sua advertência em meu livro “A Ordem dos Advogados do Brasil e o Estado brasileiro” (2001, pág.181) porque constatei que estava acontecendo exatamente aquilo que o preocupava quando a proferiu.

 Antecedi a citação de considerações, dentre as quais a de que a Ordem estava arrefecendo “sua função fiscalizadora, contribuindo, assim, com a omissão, senão a conivência, para que crises institucionais se instalem sem que a sociedade seja sequer alertada de tais possibilidades.”
O respeito público que a OAB conquistou pela luta de seus dirigentes e advogados contra os abusos da Ditadura conferiram-lhe significativos prestigio e confiabilidade. Tais conquistas custaram a vigilância, o zelo e a atuação permanente dos dirigentes e advogados que enfrentaram momentos difíceis. Superados os tempos de arbítrio, aquela imagem passou a ser alimentada episodicamente, apenas para manter a imagem, sem que a Ordem cumprisse, efetivamente, seu dever legal.

 Nem mesmo a inserção da advocacia no texto constitucional (art. 133) conseguiu que seus dirigentes compreendessem ou assumissem suas responsabilidades estatutárias, priorizadas pela Lei 8.906/94, que inverteu e ampliou as finalidades elencadas na Lei anterior (4.215/63), para enunciar, primeiramente, as de “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”. 
  Faço essas considerações para explicar por que considero, no mínimo, oportunistas as medidas que a OAB e outras instituições que têm deveres de vigilância e cobrança do Poder Público tomam, a exemplo da denúncia a órgãos internacionais do massacre ocorrido em penitenciária no Amazonas. Igualmente absurda a exigência de imediata indenização aos familiares dos internos vitimados naquela chacina.
 Não estou dizendo que chacinas cometidas no País não devam ser levadas aos organismos internacionais competentes, nem que as famílias das vítimas dos assassinatos nos presídios não devam ser indenizadas.
 O que estou dizendo é que não reconheço autoridade moral para que instituições que deveriam agir para impedir que o Poder Público e suas instituições chegassem a esse nível de deterioração venham, agora, posar de defensores de direitos humanos, quando se omitiram – como continuam a se omitir – no combate diuturno a violações contra anônimos inocentes, que não propiciam a visibilidade dos holofotes da mídia.
 Afinal, o que a OAB e instituições da sociedade civil que se arrogam o direito de denunciar essas tragédias fizeram para combater a omissão e os abusos que levaram a elas? As famílias das vítimas desses assassinatos têm mais direito ou precedência sobre as dos policiais vitimados no combate aos crimes que aqueles cometeram ou das vítimas desse cometimento? E o que essas instituições fizeram contra o desaparelhamento do aparato policial, que expõe a polícia nos confrontos com marginais melhor armados? E contra os advogados que usam a profissão para denegrir o exercício da advocacia, incorporando-se às quadrilhas que proliferam dos presídios às entranhas do Poder, como já anunciara, publicamente, um senador da República?
 Ou será que a Ordem vai dizer, como um ex-presidente da República mentiroso contumaz, que não sabe de nada, que não conhece a situação dos presídios no Brasil? Ou que não sabe que a Lei de Execuções Penais só é respeitada nos presídios para onde está sendo levada a nata representativa da parte podre do empresariado e da política partidária? E o que a Ordem tem feito contra isso? Ofícios? Requerimentos? E as medidas judiciais cabíveis? Os pedidos de intervenção federal previstos no art. 34 da Constituição Federal?
  Instituições como a OAB, que tem dever legal, e outras, especialmente de juristas, deveriam espelhar-se naqueles que construíram o prestígio dessas instituições, para agir de forma eficaz e não ficar apenas usando-as como vitrine para satisfação de interesses e vaidades pessoais, em discursos cheios de erudição e vazios de praticidade.
Essa omissão vai custar caro, muito caro, como lembrou a Ministra Carmen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, em reunião recente sobre o caso da penitenciária de Manaus: “Darcy Ribeiro fez em 1982 uma conferência dizendo que, se os governadores não construíssem escolas, em 20 anos faltaria dinheiro para construir presídios. O fato se cumpriu. Estamos aqui reunidos diante de uma situação urgente, de um descaso feito lá atrás".

 É dessa omissão que estou falando. É ela o caminho que está nos levando à estação Somália.

*Carlos Nina

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