domingo, 4 de janeiro de 2015

Claro, cristalino...

O fim da História
 
J.R. Guzzo*

É possível que 2014 acabe entrando para a memória política brasileira como o ano em que o Partido dos Trabalhadores morreu. Morreu por suicídio involuntário ou. então, por ter inoculado em si mesmo uma doença prolongada, progressiva e incurável chamada corrupção — enfermidade que degenerou suas células e o transformou em algo que não tem mais nada a ver com aquilo que sonhava ser quando nasceu. O PT continua vivo, aliás, vivíssimo, como máquina de ocupação do Estado. Mas não é mais, como pretendeu ser um dia, o partido dos brasileiros que vivem do seu trabalho; ou, menos ainda, um movimento que chegou a se imaginar como alternativa para o capitalismo no Brasil. Hoje, tragicamente, o PT da vida real é apenas o partido das empreiteiras de obras públicas, dos vendedores de bens e serviços para o Estado e de todos os que têm como ramo de negócio o assédio permanente ao Erário. É coisa que vem de longe — desde que o PT começou a tomar gosto pelo desfrute do governo. Agora, neste fim de 2014, está reduzido a um empreendimento comercial. É o que comprovam os fatos indiscutíveis revelados na presente investigação judicial sobre a corrupção na Petrobras — a roubalheira sem limites, sem controle e sem paralelo na História do Brasil que ganhou o título de petrolão e passou a ser a marca mais notável dos 34 anos de existência do PT.

Como um partido político pode sobreviver se perdeu a honra? Talvez pudesse haver alguma esperança se o ex-presidente Lula, a presidente Dilma Rousseff e a maioria das lideranças do PT decidissem romper com a estratégia de corrupção serial que hoje é a principal razão de ser do partido, e o centro vital de seu programa como organização política. Mas nenhum deles dá o menor sinal de querer alguma coisa parecida com isso. Ao contrário, o partido se mantém amarrado pelos quatro cantos com a corrupção — como prova, dia após dia, seu compromisso de defender a todo custo a conduta central da Petrobras e do seu alto-comando. Em vez de condenar os crimes cometidos ali durante os últimos doze anos, ou pelo menos tomar distância deles, o PT mergulhou de cabeça na cumplicidade com os ladrões. Chegou a ponto de conduzir no Congresso uma CPI que concluiu, em 900 páginas de relatório, que não havia nada de errado na Petrobras do petrolão; teve de voltar atrás, depois, ao perceber o tamanho da insensatez. A situação de Dilma, que desde 2003 é a pessoa mais influente na empresa, não é melhor que a do partido. Para ter certeza disso, basta fazer uma pergunta bem simples: a presidente pode ir hoje à televisão, em cadeia nacional, e jurar que durante esse tempo todo nunca soube de nenhum problema sério nos negócios mais importantes da Petrobras? Não pode. Xeque-mate.

Ao deixar-se contaminar pela corrupção, logo depois de ganhar suas primeiras eleições municipais, há cerca de trinta anos, o PT certamente não queria se matar. Na verdade, imaginava que roubar um pouco não faria mal a ninguém. (O ex-presidente Lula não admitiu, pouco tempo atrás, que achava razoável assaltar um banco aqui ou acolá, pois banqueiro tem dinheiro de sobra? Eis aí o espírito da coisa.) Mas esses cálculos, na melhor das hipóteses, eram puro auto-engano. Como se sabe muito bem, não há vício que leve à virtude, e, no caso do PT, roubar um pouco só levou a roubar mais — das prefeituras para cima, da propina paga peia companhia de ônibus do município às pilhas de dinheiro ofertadas pelas maiores construtoras do país, do mundinho da merenda escolar ao mundão dos negócios de cachorro grande. Ali se fala inglês. Vai-se do real aos milhões de dólares depositados em contas no exterior. Do outro lado do balcão estão multinacionais, fundos de pensão, a carteira do BNDES — e, como se vê no petrolão, o saco sem fundo da Petrobras. É onde estamos. Hoje, quando se fala em PT, é raro ouvir alguma coisa ligada ao mundo do trabalhador. Pelo que se ouve, o PT virou um partido obrigado a explicar o tempo todo coisas como sobrepreço, obra sem licitação, "aditivo contratual" e outras maravilhas parecidas.

O PT de Lula, do governo Dilma e da "base aliada" no Congresso continua existindo, é claro, com toda a sua capacidade para fazer o mal — e até o bem, se quisesse. Continua sendo o maior partido político deste país. Continua nomeando gente que manda. Tem, pelos seus cálculos, quase 1,5 trilhão de reais para gastar no Orçamento de 2015. Mas virou outra coisa. Depois de andar durante três décadas com a carteirinha de autoridade no bolso, principalmente nos últimos doze anos, o PT perdeu a fé. Não foi capaz de trazer para o debate nacional, durante esse tempo todo, uma única ideia que prestasse, ou que pudesse ser chamada de ideia. Não conseguiu formar nenhuma liderança real em toda a sua história, uma só que fosse — continua, exatamente como na sua fundação, em 1980, só tendo Lula e, abaixo dele, um abismo. Alguém poderia citar um nome remotamente parecido para desempenhar seu papel no partido? Na última campanha eleitoral, o PT teve cerca de 350 milhões de reais, mais que qualquer outro competidor, para reeleger a sua candidata à Presidência. Partido dos Trabalhadores? Está na cara que uma organização com mais de 350 milhões para torrar numa campanha não pode ser o partido dos trabalhadores; pode ser qualquer coisa, menos isso.

É incompreensível, da mesma forma, que esteja do lado da população brasileira, para valer, um grupo político que causou tanta destruição no patrimônio popular quanto o PT. Nunca antes, desde a fundação da Petrobras, em 1953, um governo foi capaz de provocar tantas perdas em seu valor, em seus cofres e em sua reputação. As ações da Petrobras, cotadas a mais de 50 reais em 2008, quando chegaram a seu preço mais alto, estão fechando este ano abaixo de 10; o valor da empresa, então acima de 730 bilhões, caiu hoje para 115. A tenebrosa Refinaria Abreu e Lima, em construção desde 2007, em Pernambuco, e a grande estrela das atuais investigações de corrupção, é um dos maiores desastres da história da indústria brasileira; orçada inicialmente em 2,5 bilhões de dólares, pode acabar custando até oito vezes mais, e continua sem data de entrega após sete anos em obras. Desde que o PT chegou ao governo, cerca de 800 000 contratos sem licitação foram assinados pela Petrobras. Tanto Lula como Dilma sabiam perfeitamente disso — mas hoje, depois que a casa caiu, dizem que jamais perceberam irregularidade alguma nos negócios da empresa. Esperavam o quê?

Há muito mais a dizer, e a História certamente dirá — a esta altura, por sinal, não existe mais nenhuma possibilidade de que a calamidade geral da Petrobras deixe de ter um peso decisivo no julgamento final da passagem de Lula, Dilma e PT pelo governo do Brasil. A alegação de que a roubalheira se limitava ao quintal da arraia-miúda da companhia, longe dos excelsos olhos de Suas Excelências, tornou-se comprovadamente inverossímil diante dos fatos — é uma "fabulação", como diria a presi-dente Dilma. Um único episódio, ocorrido cinco anos atrás, é suficiente para deixar isso mais do que claro. Em 2009 o Tribunal de Contas da União informou a existência de indícios sérios de corrupção nas obras da Refinaria Abreu e Lima, e o Congresso, com "base aliada" e tudo, aprovou uma resolução que suspendia o repasse de verbas para o projeto. Lula, muito simplesmente, vetou a decisão. Ela poderia pôr em risco "25 000" empregos, explicou o então presidente — uma repetição ao pé da letra da desculpa mais velha, e mais eficaz, que as empreiteiras utilizam quando a coisa aperta para o lado delas. Dilma, que segundo o delator-mor do petro-lão foi informada, sim, dos desatinos então cometidos na estatal, não pode, obviamente, ter ignorado esse veto — como vem dizer, agora, que o governo "apurou" todas as denúncias?

O que a presidente e Lula fizeram foi exatamente o contrário — sabotaram as investigações, isso sim, enquanto acharam possível esconder a realidade. Dilma, para complicar as coisas, está diretamente envolvida na compra da refinaria americana de Pasadena pela Petrobras, talvez o mais inexplicável de todos os maus negócios já fechados em mais de meio século de existência da empresa. Sua amiga de confiança, braço-direito e alma gêmea Graça Foster, a atual presidente da companhia, mentiu expressamente ao declarar que ignorava denúncias de corrupção em negócios da empresa com pelo menos uma fornecedora estrangeira; tem a seu crédito, também, a ideia de lançar no balanço da Petrobras valores relativos a propinas pagas no processo geral de corrupção ora em apreciação pela Justiça. Como resultado direto de toda a ladroagem já denunciada, a maior empresa do Brasil está encerrando o ano com uma humilhação sem precedentes: não conseguiu fechar até agora o balanço de suas contas do terceiro trimestre de 2014, pois nenhuma firma de auditoria séria está disposta a examinar o documento. Quem teria coragem de acreditar em algum número apresentado pela Petrobras de Dilma & Graça?

O jornalista Fernando Gabeira escreveu há pouco que o PT morreu quando Lula chegou à Presidência, em 2003; a partir dali, continuou morrendo. É precisamente isso. Suas lideranças desistiram de construir o futuro; ficaram 100% absorvidas em desfrutar as atrações do presente. Agora é só isso que têm — e isso só dura enquanto o chefe durar. A história do PT acabou porque o partido não tem mais nenhum interesse em buscar um país diferente desse que está aí, pois descobriu no governo que gosta das coisas exatamente do jeito que elas estão. O partido não resistiu, lá atrás, à primeira mala de dinheiro que jogaram em uma de suas mesas; na verdade, sua resistência aos métodos políticos da "direita" revelou-se, para surpresa geral, de curtíssima duração. Agora não dá para voltar atrás — colocar "a pasta de volta no dentifrício", na imagem da presidente Dilma. Hoje o PT e sua máquina de propaganda estão reduzidos a ficar defendendo empreiteiras de obras — é isso, na prática, que significa seu combate contra as investigações do petrolão — e a organizar rotas de escape para as punições ora em gestação nas engrenagens da Justiça penal. Há um vale de lágrimas pela frente. A corrupção na Petrobras não é só a malfadada Refinaria Abreu e Lima; estende-se às obras do Comperj, no Rio de Janeiro, ao consórcio de empresas montado para fornecer sondas e outros equipamentos pesados à empresa e sabe lá Deus o que mais. Pior ainda, a corrupção no governo não fica só na Petrobras; espalha-se por toda a vasta porção da máquina pública que o PT e a "base aliada" privatizaram em seu benefício. Não adianta grande coisa, aí, atolar-se ainda mais na cumplicidade com as gangues partidárias do Congresso em busca de "blindagem política", ou esperar que "a mídia canse" de falar do assunto. Os políticos podem dar apoio, mas não assinam sentenças. Os fatos podem sair do noticiário, mas não vão sair dos autos.

Ninguém, em toda a história política do Brasil, foi tão longe na estrada do sucesso, nem tão rápido, como o PT. Quem poderia imaginar, na época da fundação, que uma entidade montada por chefes de sindicatos em comícios num estádio de futebol iria se tomar o maior partido político do Brasil? Como prever que esse partido criado no calor de greves operárias, sem nenhuma consulta à "esquerda" que até então se achava a única força autorizada a falar pelos trabalhadores brasileiros, viria a ocupar quatro vezes seguidas a Presidência da República? O triunfo foi realmente imenso — mas não foi duradouro. O PT, enquanto crescia, foi perdendo a alma. Para ganhar cada vez mais, teve de ficar cada vez menos parecido com o que foi, ou quis ser. O resultado é que hoje, quando poderia estar vivendo a sua hora mais brilhante, chega, também ele, ao fim da História.

*J.R. Guzzo é articulista da revista Veja

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