quinta-feira, 7 de março de 2019

Deserto do Mundo (do Coração)

por Emanuel Medeiros Vieira
para as minhas irmãs e os meus irmãos

“Non ridere, Non Lugere, Neque Destestari, Sed Intelligere". 
"Não rir, Não lamentar, Nem Amaldiçoar, Mas Compreender".
Baruch Spinoza (1633-1677)
  
Viagem, passagem, tempo – meros transeuntes no planeta.
   A comunicação pode ser (ou parecer) impossível, mas não desistimos dela.
   Pois “no deserto do mundo a única terra fértil é o coração do ser humano”, como acreditava Dom Helder Câmara (1909-1999).
   

   É fundamental a passagem da escravidão para a libertação.
   Acredito que todos nós percebemos os imensos avanços tecnológicos alcançados pela civilização.
   Mas eles não correspondem à vida interior das pessoas: regressões éticas, mentiras, corrupção desenfreada, os mais variados jogos da esperteza (maliciosamente confundidos com a autêntica criatividade - que nos faz crescer), a desilusão no coração humano, as dificuldades de alcançarmos as verdadeiras mudanças (internas ou externas), a sensação de que vivemos num soberano exílio, no qual não triunfa a intersubjetividade das consciências - mas o individualismo - para a construção de um mundo mais ético, justo e melhor.

   Toneladas de papéis não dão conta do desassossego humano.
   Afora, as doenças, a imensa desigualdade, as guerras todas, e nem pequenos conflitos se resolvem.
   O Papa Francisco lamentou a falta de união ao redor do mundo e alertou contra a busca desenfreada por lucros que beneficia apenas a poucos.

“Quanta dispersão e solidão existe entre nós. O mundo está completamente conectado e, ainda assim, parece crescentemente desunido”, disse ele.

   A própria noção de caridade, para muitos, virou algo piegas, quando na verdade ela é ”a esponja do coração: quanto mais bens espreme, mais bens lança de si”.    Sim, viagem, passagem, tempo - meros transeuntes no planeta.
   Para Soren Kierkegaard (1813-1855), “o possível é um extraordinário espelho que só pode ser usado com prudência”.

   E a nossa memória afetiva?

   “Esquecer alguém é como/esquecer de apagar a luz no quintal/e deixa-la acesa também de dia:/mas isso também é lembrar/pela luz”.
São versos do poeta israelense Yehuda Amichai (1924-2000).

   Segundo Marcelo ,“a ideia da casa abandonada, casa que deixamos provisoriamente, casa que alguém constrói – volta e meia aparece nos versos desse autor, que nasceu na Alemanha, mas migrou com a família para a Palestina em 1935”. A casa poderia ser o mundo.

   Casa não é só fundação, prego, tijolo, cimento, areia.

   É essencialmente memória afetiva, estórias, pés que lá pisaram, pipas no quintal, onde havia um pé de goiaba e uma outra “casinha” (de madeira) com enxadas, pás, arame, tanta coisa, e na casa principal, entrando-se pelos fundos, um fogão de lenha, um tio que chegava sorridente, alegre, abraçando mamãe com incrível carinho e brincadeiras, canjica na Semana Santa, tainha frita, e mesmo na hora de algum luto ela continuava à frente do fogão de lenha.

   Parece que todos me visitam nesta manhã de domingo - ofereço café novo, pão feita em casa, geleia de morango, todo o amor acumulado por gerações, estão todos juntos - também a já numerosa legião de mortos amados - com eles, desde o diagnóstico do meu câncer (em 30 de dezembro de 2014), sonho de maneira recorrente, até contínua, um café no aeroporto com a Letícia, “liderando” um grupo de psicólogos, Marcelo relembrando nossos acampamentos, aventuras, tragos (um bilhar nos “Ingleses”, na Ilha de Santa Catarina, o Júlio César estava presente), o Pepe convida-nos para um churrasco, ele prepara com esmero , Giocondinha querendo a “saideira” (de cerveja), em outra dimensão deve ter esquecido que não bebo há quase três décadas, mas para ela não ficar triste proponho um suco de maracujá, Alfredo David, apaixonado pelo mar, ilumina o seu olhar quando fala de uma casinha azul e branca que ele amava muito, no extremo-norte da mesma Ilha, perdão aos mortos que não citei, o domingo se põe, os visitantes foram embora, mas um encantamento permanece - como um cheiro de jasmim - nos pássaros cantando, na lua cheia, no tempo que passa batido, na própria vida - ela mesmo, a gente querendo segurar - para sempre - o instante.
(Brasília, março de 2019)

Comentátio de Eduardo  Dutra Aydos

Emanuel, publiquei o teu texto no facebook com a seguinte apresentação: “NÃO CONHEÇO TEORIA LITERÁRIA, na profundidade que gostaria. Mas consigo distinguir alguns estereótipos deste ofício. Na juventude me empolgava o romântico, na maioridade flertei com o épico e na maturidade compreendi o trágicoi. Mas, fico pensando, talvez não tenha sido essa, tao somente, uma evolução pessoal. Talvez os tempos tenham mudado... e realce a tragédia como a expressão cênica do nosso tempo. Talvez, na atualidade do mundo, o romantismo saiba como tragédia e a força de expressá-los restaure a condição épica da nossa existência. Acompanhando os textos e a trajetória literária do Emanuel - e quem sou eu para afirmá-lo, senão a sincera ousadia de acreditá-lo - essa percepção, ganha a força de uma afirmação e a generosa verdade da razão pelo sentimento.”
Longa vida na aurora de cada dia!
E um forte abraço
Aydos

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