"O gastrônomo conta ter encontrado em Amsterdã um “pobre diabo” ao qual os argelianos haviam cortado a língua, com o qual se comunicou por escrito. Tendo visto que lhe haviam cortado toda sua parte anterior, perguntou-lhe se ainda encontrava alguma sabor no que comia. Respondeu-lhe o argeliano que ainda sentia o gosto daquilo que era um pouco sápido. Mas que as coisas fortemente ácidas ou amargas lhe causavam dores insuportáveis".
Ter que comer apenas para não morrer, sem o prazer da degustação, segundo Janer, seria o supremo castigo para qualquer vivente.
Em seus últimos dias, em São Paulo, em uma conversa por mensagens, me dizia que desta vez a coisa estava preta. Vinhos nunca mais. Tinha problemas de fala devido às aplicações de radiação para curar, pela sexta vez, um câncer de garganta. Não resistiu. Foi a última vez que nos falamos.
Em seus últimos dias, em São Paulo, em uma conversa por mensagens, me dizia que desta vez a coisa estava preta. Vinhos nunca mais. Tinha problemas de fala devido às aplicações de radiação para curar, pela sexta vez, um câncer de garganta. Não resistiu. Foi a última vez que nos falamos.
No texto abaixo, Janer descreve o seu sofrimento por ter perdido um dos sentidos que mais lhe era caro. Um texto primoroso:
SAUDADES DA OSMAZOMA
Há palavras que desaparecem da língua como por encanto. Osmazoma é uma delas. Você pode procurá-la no Houaiss ou Aurélio ou demais dicionários contemporâneos. Não vai encontrar. Se quiser encontrá-la, terá de voltar no tempo, ao dicionário de Candido de Figueiredo. Ou ao Caldas Aulete. Apesar da origem francesa, não consta nem mesmo do Petit Robert.
Em meus dias de Paris, para inveja de meus leitores gourmands, morei na Rue Brillat-Savarin. Nome indissociável da cultura francesa, Jean Anthelme Brillat-Savarin é autor de um clássico da gastronomia, La Physiologie du Goût. Mas inveja sem nenhuma razão de ser. A rua onde vivi meus dias, apesar de sugerir festança e bona-chira, não tinha sequer um restaurante. Foi rua insípida, que sempre evitava, saindo pelos fundos de meu prédio para cair em uma outra, sem a fama do gastrônomo, mas cheia de vida e odores, a Amiral Mouchez. Minha relação com Brillat-Savarin é outra. Foi nele que encontrei, pela primeira vez, a osmazona. Que tanta falta me fez nos últimos meses. Quem nunca teve um carcinoma, jamais terá idéia do que seja sentir falta da osmazoma.
Em A Fisiologia do Gosto, Brillat-Savarin considera – e apropriadamente – ter a língua uma grande função no mecanismo da degustação. Devido às suas numerosas papilas, ela se impregna das partículas sápidas e solúveis dos corpos com os quais tem contato. Mas não só a língua é responsável pelo paladar. Também participam da degustação as bochechas, o palato e as fossas nasais. As bochechas – segundo o autor – fornecem a saliva, igualmente necessária à mastigação e à formação do bolo alimentar. Sem a odorização que se opera no fundo da boca, a sensação do gosto seria obtusa e totalmente imperfeita.
O gastrônomo conta ter encontrado em Amsterdã um “pobre diabo” ao qual os argelianos haviam cortado a língua, com o qual se comunicou por escrito. Tendo visto que lhe haviam cortado toda sua parte anterior, perguntou-lhe se ainda encontrava alguma sabor no que comia. Respondeu-lhe o argeliano que ainda sentia o gosto daquilo que era um pouco sápido. Mas que as coisas fortemente ácidas ou amargas lhe causavam dores insuportáveis.
Vivi um pouco a condição do pobre diabo de Amsterdã nos últimos meses. Mais que um pouco, diria. Com o tratamento radioativo, a salivação desapareceu. Saliva parece ser algo desagradável, mas desagradável mesmo se torna quando some. A mastigação se torna inviável e dolorosa. Por outro lado, fora a sensação do doce, cujas papilas respectivas se encontram na ponta da língua, perdi toda e qualquer sensação de sabor. Para os glutões, Dante reserva o terceiro círculo do inferno, onde ficam atolados na lama e são fustigados por uma chuva fortíssima com granizo, ouvindo sempre os latidos de Cérbero, o cão de três cabeças e cabelo de serpentes que guardava as portas do Inferno.
Faltou imaginação ao vate. Mais cruel teria sido se privasse de saliva e de paladar os que gostam de comer. Pois comer sem sentir o gosto do que se come me parece castigo mais que adequado ao mais infame dos condenados.
Criado no campo, os sabores básicos de minha infância foram arroz, feijão e charque. Osmazoma, só em dias de carneação. Dia seguinte, a carne virava charque. Vivi depois em cidades do interior gaúcho, cuja culinária é um breve contra o paladar. Sabores mesmo, comecei a curti-los em Porto Alegre, onde já havia alternativas de uma cozinha italiana, alemã, árabe, japonesa ou chinesa. Mas diversidade de sabores, festa para o palato, só encontramos viajando. Culinária é coisa do terrunho. Acho muito estranho quando alguém me fala de cozinha internacional. Toda cozinha depende de geografia. Cozinha internacional, para mim, deve ser um prato cozido em um vôo entre um país e outro.
Gastronomia foi algo que não curti em minha juventude. Só bem mais tarde entrei neste universo. Passei então a dar valor à restauração. Restaurantes, a meu ver, são um dos mais geniais achados do Ocidente. Chego a uma cidade estranha na qual nunca estive e lá está, à minha espera, uma equipe de profissionais que irão brindar-me com o que de melhor seu país oferece. Cardápio é outro grande avanço. Numa mesma mesa, quatro pessoas podem degustar quatro cozinhas distintas.
Sabores são relativos. Não consegui até hoje convencer a Primeira-Namorada a comer ostras ou camembert. Andouilletes ou tête de veau, ni pensar. Não a recrimino. Ano passado ainda, em Paris, ofereci a uma amiga um tequinho do prato que busco correndo tão logo chego a Paris, as andouilletes, um embutido de tripa com tripas dentro. Mal o pôs na boca, teve de fazer força para não vomitar. Era marinheira de primeira viagem e gostar de andouilletes exige certa quilometragem.
O primeiro homem a comer uma ostra deve ter sido pessoa de grande coragem intelectual. Quanto a camembert, sempre que compro algum, recebo um alerta de minha faxineira: “Professor, tem algo podre na geladeira”. Podre nada, Cristina. É queijo dos melhores. Gastronomia exige um certo destemor ante o desconhecido. Exige também idade, diria. Jovem não é muito afeito a emoções fortes.
Mas falava da osmazoma. Nestes meus dias de inferno astral, em que perdi praticamente todos os sabores, o que mais me faltava era o sabor dela. Degustar uma picanha e sentir gosto de borracha é tortura que não desejo a ninguém. Mas minhas sensações palatais ressuscitaram. Voltei ao mundo dos vivos. Antes que me esqueça: osmazoma, para Brillat-Savarin, é a molécula odorante das carnes. Em verdade, se enganava. Hoje se sabe que o gosto das carnes resulta da presença de numerosas moléculas e não decorre de um princípio único.
Só sabe o que é paladar quem um dia o perdeu. Foi nestes dias que lembrei Fierro:
Solo queda al desgracio,
lamentar el bien perdido.
Se saí do inferno, ainda não voltei ao Éden. Se já lambuzo o que me restou de bigodes com uma picanha, falta ainda o sangue das uvas, proibido pelos homens de branco. Mais dia menos dia vou à forra.
Há palavras que desaparecem da língua como por encanto. Osmazoma é uma delas. Você pode procurá-la no Houaiss ou Aurélio ou demais dicionários contemporâneos. Não vai encontrar. Se quiser encontrá-la, terá de voltar no tempo, ao dicionário de Candido de Figueiredo. Ou ao Caldas Aulete. Apesar da origem francesa, não consta nem mesmo do Petit Robert.
Em meus dias de Paris, para inveja de meus leitores gourmands, morei na Rue Brillat-Savarin. Nome indissociável da cultura francesa, Jean Anthelme Brillat-Savarin é autor de um clássico da gastronomia, La Physiologie du Goût. Mas inveja sem nenhuma razão de ser. A rua onde vivi meus dias, apesar de sugerir festança e bona-chira, não tinha sequer um restaurante. Foi rua insípida, que sempre evitava, saindo pelos fundos de meu prédio para cair em uma outra, sem a fama do gastrônomo, mas cheia de vida e odores, a Amiral Mouchez. Minha relação com Brillat-Savarin é outra. Foi nele que encontrei, pela primeira vez, a osmazona. Que tanta falta me fez nos últimos meses. Quem nunca teve um carcinoma, jamais terá idéia do que seja sentir falta da osmazoma.
Em A Fisiologia do Gosto, Brillat-Savarin considera – e apropriadamente – ter a língua uma grande função no mecanismo da degustação. Devido às suas numerosas papilas, ela se impregna das partículas sápidas e solúveis dos corpos com os quais tem contato. Mas não só a língua é responsável pelo paladar. Também participam da degustação as bochechas, o palato e as fossas nasais. As bochechas – segundo o autor – fornecem a saliva, igualmente necessária à mastigação e à formação do bolo alimentar. Sem a odorização que se opera no fundo da boca, a sensação do gosto seria obtusa e totalmente imperfeita.
O gastrônomo conta ter encontrado em Amsterdã um “pobre diabo” ao qual os argelianos haviam cortado a língua, com o qual se comunicou por escrito. Tendo visto que lhe haviam cortado toda sua parte anterior, perguntou-lhe se ainda encontrava alguma sabor no que comia. Respondeu-lhe o argeliano que ainda sentia o gosto daquilo que era um pouco sápido. Mas que as coisas fortemente ácidas ou amargas lhe causavam dores insuportáveis.
Vivi um pouco a condição do pobre diabo de Amsterdã nos últimos meses. Mais que um pouco, diria. Com o tratamento radioativo, a salivação desapareceu. Saliva parece ser algo desagradável, mas desagradável mesmo se torna quando some. A mastigação se torna inviável e dolorosa. Por outro lado, fora a sensação do doce, cujas papilas respectivas se encontram na ponta da língua, perdi toda e qualquer sensação de sabor. Para os glutões, Dante reserva o terceiro círculo do inferno, onde ficam atolados na lama e são fustigados por uma chuva fortíssima com granizo, ouvindo sempre os latidos de Cérbero, o cão de três cabeças e cabelo de serpentes que guardava as portas do Inferno.
Faltou imaginação ao vate. Mais cruel teria sido se privasse de saliva e de paladar os que gostam de comer. Pois comer sem sentir o gosto do que se come me parece castigo mais que adequado ao mais infame dos condenados.
Criado no campo, os sabores básicos de minha infância foram arroz, feijão e charque. Osmazoma, só em dias de carneação. Dia seguinte, a carne virava charque. Vivi depois em cidades do interior gaúcho, cuja culinária é um breve contra o paladar. Sabores mesmo, comecei a curti-los em Porto Alegre, onde já havia alternativas de uma cozinha italiana, alemã, árabe, japonesa ou chinesa. Mas diversidade de sabores, festa para o palato, só encontramos viajando. Culinária é coisa do terrunho. Acho muito estranho quando alguém me fala de cozinha internacional. Toda cozinha depende de geografia. Cozinha internacional, para mim, deve ser um prato cozido em um vôo entre um país e outro.
Gastronomia foi algo que não curti em minha juventude. Só bem mais tarde entrei neste universo. Passei então a dar valor à restauração. Restaurantes, a meu ver, são um dos mais geniais achados do Ocidente. Chego a uma cidade estranha na qual nunca estive e lá está, à minha espera, uma equipe de profissionais que irão brindar-me com o que de melhor seu país oferece. Cardápio é outro grande avanço. Numa mesma mesa, quatro pessoas podem degustar quatro cozinhas distintas.
Sabores são relativos. Não consegui até hoje convencer a Primeira-Namorada a comer ostras ou camembert. Andouilletes ou tête de veau, ni pensar. Não a recrimino. Ano passado ainda, em Paris, ofereci a uma amiga um tequinho do prato que busco correndo tão logo chego a Paris, as andouilletes, um embutido de tripa com tripas dentro. Mal o pôs na boca, teve de fazer força para não vomitar. Era marinheira de primeira viagem e gostar de andouilletes exige certa quilometragem.
O primeiro homem a comer uma ostra deve ter sido pessoa de grande coragem intelectual. Quanto a camembert, sempre que compro algum, recebo um alerta de minha faxineira: “Professor, tem algo podre na geladeira”. Podre nada, Cristina. É queijo dos melhores. Gastronomia exige um certo destemor ante o desconhecido. Exige também idade, diria. Jovem não é muito afeito a emoções fortes.
Mas falava da osmazoma. Nestes meus dias de inferno astral, em que perdi praticamente todos os sabores, o que mais me faltava era o sabor dela. Degustar uma picanha e sentir gosto de borracha é tortura que não desejo a ninguém. Mas minhas sensações palatais ressuscitaram. Voltei ao mundo dos vivos. Antes que me esqueça: osmazoma, para Brillat-Savarin, é a molécula odorante das carnes. Em verdade, se enganava. Hoje se sabe que o gosto das carnes resulta da presença de numerosas moléculas e não decorre de um princípio único.
Só sabe o que é paladar quem um dia o perdeu. Foi nestes dias que lembrei Fierro:
Solo queda al desgracio,
lamentar el bien perdido.
Se saí do inferno, ainda não voltei ao Éden. Se já lambuzo o que me restou de bigodes com uma picanha, falta ainda o sangue das uvas, proibido pelos homens de branco. Mais dia menos dia vou à forra.
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