sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A HORA CHEGA

por Emanuel Medeiros Vieira
  Para todos aqueles (cada vez mais escassos) que ainda amam a leitura.

Para Clarice (minha filha) e Tomás - que sejam iluminados em Praga, na terra de Franz Kafka.

“Último antídoto do nada/entre as peçonhas da vida/coisa por sorte encontrada/e por desgraça perdida,/amor lega, em sua ausência,/um lembrete à consciência/se ela por acaso esqueceu: nada que te pertence é teu”(…)

“Uma vida inteira passada/dentro dos confins de um corpo/junto ao qual vem atrelada/ a consciência, peso morto/que acusa o golpe sofrido/e cochicha ao pé do ouvido/depois que o fato se deu: nada que te pertence é teu”.

(Paulo Henriques Britto "Nenhum Mistério")

   Sim. Sempre chega a Hora..
   Quando, cedo, fazes a barba,, colocando a gravata, no trânsito caótico de todos os dias e, sem aviso, o infarte fulminante. Para os grandes, para os pequenos.
   Ou em um câncer longo – tão dolorido.
   Tomas um cafezinho no bar do aeroporto e, claro, não sabes que o avião irá cair.
   Explosão , sempre o fogo, a fumaça, todos mortos, lágrimas.
   E o tempo passa, tudo é esquecido – não para as famílias.
   Quando a parteira te tira da barriga da mãe, começa “o ser para a morte”.

   Não há truques, arranjos. É isso. 


   E exatamente neste momento, neste dia que nasce, após a madrugada inteiramente insone - a”cabeça viajando” para mil mundos (e não temos o controle de nada–nada), um pássaro canta na árvore em frente. Eu sei: há mar, mãe, pai, companheira, pão quente, amora, pitanga.

Vale a vida.

E, APESAR DE TUDO, É UM NOVO DIA.

Escrevi:”e não temos o controle de nada-nada”. E pensamos que temos. Nem das nossas vidas E, é claro, nem da dos outros.
   (E Caronte, o Barqueiro, carrega as almas dos recém-mortos.
É o seu ofício.
Ele coloca uma moeda sobre a boca dos cadáveres.
Jovem, eu pensava que fossem duas moedas nos olhos. Mitologias diferentes?
E segue o rio.
)

   Eu sei: não só isso.

   Nada de queixas ou autopiedade: ­ lembro-me do Evangelho de São Lucas (Capítulo 12, Versículo 48): (…) “Porque a quem muito foi dado, muito será cobrado. Quanto mais se confiar a alguém, dele há mais se há de exigir”.

   Também recordo-me de Soren Kierkegaard (1813-1855), o grande filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarquês, considerado o primeiro filósofo existencialista (e que, junto com Albert Camus, tanto influenciou minha geração.).

   Não, não citarei nada de complexo do profundo pensador – apenas: “Amor é o que tem sabor de eternidade”.
   Tão simples – tão verdadeiro..

   A Hora Chega!

   Mas, nesse trânsito, é possível fazer algo. A obra fica.

   Charles Aznavour (1924-2018) tinha uma canção (“Hier Encore”) que dizia: “Ainda ontem tinha 20 anos, acariciava o tempo, joguei com a vida como se joga com o amor.”

(Brasília, outubro de 2018)

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