com a lucidez de quem organiza uma festa. O texto sobre cinema que eu mais gostei de ter lido.
Cineasta italiano Federico Fellini |
Fellini: a festa da insanidade
Por Nei Duclós
O tema de Fellini é a indústria do espetáculo: a fotonovela em “O Sheik Branco”, o cinema em “Oito e Meio”, o circo em “La Strada”, o concerto em “Ensaio de Orquestra”, o jornalismo em “A Doce Vida”, o turismo em “La Nave Va”, a publicidade em “Beba Mais Leite”. Seu enfoque é a queda dos protagonistas em cada um dos vetores dessa indústria: o falso herói da fotonovela, o cineasta enganador e vazio, os artistas-mendigos de rua, os músicos demitidos, o jornalista sensacionalista, o viajante golpista, a estrela decadente dos comerciais.
Avesso da indústria cultural bem sucedida, esse mundo de segunda categoria é mostrado cruamente por meio do gesto “natural” da vida diária, inspirado na comedia della’arte, de funda raiz popular, contaminando o espetáculo: eis a matéria-prima deste cinema de primeiro time. O truque de Fellini é apresentá-lo por meio do exagero — que é a percepção encantada e assombrada da inocência diante do mistério. Assim, o universo da decadência das representações no palco, na praça, no pátio ou na tela, sopra sem parar a percepção para o espaço mítico da memória.
Com isso, entroniza-se o princípio — a primeira visão de mundo, quando somos pequenos diante de tudo. O toque mágico da Inocência deixa-se seduzir, sem saber, pelo terror da queda. Mulheres assombrosas, falsos heróis galantes e homens truculentos levam crianças ou donzelas para o abismo dos jogos perigosos, para o aconchego dos lugares fechados, para o brilho das paisagens movediças.
Mas há também pecado, embora oculto, no resgate da inocência por meio da memória. Esta, é um recurso do adulto enjaulado num presente insuportável, que revolve a lembrança, em busca de uma saída. É por isso que o mundo desmascarado se rebela (melhor, se vinga), para ter seu quinhão de dignidade. O bordel torna-se feminista em mulheres e a modelo desce do outdoor para peitar o moralista em “Beba Mais Leite”. Mas essa reviravolta, que promove a revelação por meio da denúncia, acaba em arrependimento, como em “La Strada”, quando é tarde demais para reconhecer os sentimentos; ou em tentativa de suicídio, como em “Oito e Meio”; ou em desespero em quase todos os filmes ou simplesmente em delírio.
Não há salvação para personagens, instituições, atividades ou espectadores nesta arte, onde todos sucumbem diante da lucidez de Fellini, que filmou a insanidade como quem organiza uma festa.
Nei Duclós é escritor e jornalista.
Anônimo deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Fellini das letras": E tudo isto na auto-lembrança eterna de "io mi ricordo" de Amarcord onde penas cintilantes de faisão monumental se confundem com a carícia dos seios fartos da donzela, onde o real e o imaginário são dois planos contidos num só: A memória da vida...
Bravo Fellini.
Vi Vendo, o cineasta.
Avesso da indústria cultural bem sucedida, esse mundo de segunda categoria é mostrado cruamente por meio do gesto “natural” da vida diária, inspirado na comedia della’arte, de funda raiz popular, contaminando o espetáculo: eis a matéria-prima deste cinema de primeiro time. O truque de Fellini é apresentá-lo por meio do exagero — que é a percepção encantada e assombrada da inocência diante do mistério. Assim, o universo da decadência das representações no palco, na praça, no pátio ou na tela, sopra sem parar a percepção para o espaço mítico da memória.
Com isso, entroniza-se o princípio — a primeira visão de mundo, quando somos pequenos diante de tudo. O toque mágico da Inocência deixa-se seduzir, sem saber, pelo terror da queda. Mulheres assombrosas, falsos heróis galantes e homens truculentos levam crianças ou donzelas para o abismo dos jogos perigosos, para o aconchego dos lugares fechados, para o brilho das paisagens movediças.
Mas há também pecado, embora oculto, no resgate da inocência por meio da memória. Esta, é um recurso do adulto enjaulado num presente insuportável, que revolve a lembrança, em busca de uma saída. É por isso que o mundo desmascarado se rebela (melhor, se vinga), para ter seu quinhão de dignidade. O bordel torna-se feminista em mulheres e a modelo desce do outdoor para peitar o moralista em “Beba Mais Leite”. Mas essa reviravolta, que promove a revelação por meio da denúncia, acaba em arrependimento, como em “La Strada”, quando é tarde demais para reconhecer os sentimentos; ou em tentativa de suicídio, como em “Oito e Meio”; ou em desespero em quase todos os filmes ou simplesmente em delírio.
Não há salvação para personagens, instituições, atividades ou espectadores nesta arte, onde todos sucumbem diante da lucidez de Fellini, que filmou a insanidade como quem organiza uma festa.
Nei Duclós é escritor e jornalista.
Anônimo deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Fellini das letras": E tudo isto na auto-lembrança eterna de "io mi ricordo" de Amarcord onde penas cintilantes de faisão monumental se confundem com a carícia dos seios fartos da donzela, onde o real e o imaginário são dois planos contidos num só: A memória da vida...
Bravo Fellini.
Vi Vendo, o cineasta.
E tudo isto na auto-lembrança eterna de "io mi ricordo" de Amarcord onde penas cintilantes de faisão monumental se confundem com a carícia dos seios fartos da donzela, onde o real e o imaginário são dois planos contidos num só: A memória da vida...
ResponderExcluirBravo Fellini.
Vi Vendo, o cineasta.