domingo, 4 de setembro de 2011

Fellini das letras



     O jornalista, escritor, poeta e amigo Nei Duclós escreveu no seu Facebook: "o texto sobre cinema que eu mais gostei de ter escrito".
    Jornalista competente e senhor das letras, Nei também é um excelente editor. Ao colocar este simples comentário, fisga qualquer um para dentro do seu texto magistral. Curto, simples, substancioso.
    Nei escreve sobre Fellini com a lucidez de quem organiza uma festa. O texto sobre cinema que eu mais gostei de ter lido.
 

Cineasta italiano Federico Fellini
    Fellini: a festa da insanidade


    O tema de Fellini é a indústria do espetáculo: a fotonovela em “O Sheik Branco”, o cinema em “Oito e Meio”, o circo em “La Strada”, o concerto em “Ensaio de Orquestra”, o jornalismo em “A Doce Vida”, o turismo em “La Nave Va”, a publicidade em “Beba Mais Leite”. Seu enfoque é a queda dos protagonistas em cada um dos vetores dessa indústria: o falso herói da fotonovela, o cineasta enganador e vazio, os artistas-mendigos de rua, os músicos demitidos, o jornalista sensacionalista, o viajante golpista, a estrela decadente dos comerciais.

     Avesso da indústria cultural bem sucedida, esse mundo de segunda categoria é mostrado cruamente por meio do gesto “natural” da vida diária, inspirado na comedia della’arte, de funda raiz popular, contaminando o espetáculo: eis a matéria-prima deste cinema de primeiro time. O truque de Fellini é apresentá-lo por meio do exagero — que é a percepção encantada e assombrada da inocência diante do mistério. Assim, o universo da decadência das representações no palco, na praça, no pátio ou na tela, sopra sem parar a percepção para o espaço mítico da memória.


     Com isso, entroniza-se o princípio — a primeira visão de mundo, quando somos pequenos diante de tudo. O toque mágico da Inocência deixa-se seduzir, sem saber, pelo terror da queda. Mulheres assombrosas, falsos heróis galantes e homens truculentos levam crianças ou donzelas para o abismo dos jogos perigosos, para o aconchego dos lugares fechados, para o brilho das paisagens movediças.


     Mas há também pecado, embora oculto, no resgate da inocência por meio da memória. Esta, é um recurso do adulto enjaulado num presente insuportável, que revolve a lembrança, em busca de uma saída. É por isso que o mundo desmascarado se rebela (melhor, se vinga), para ter seu quinhão de dignidade. O bordel torna-se feminista em mulheres e a modelo desce do outdoor para peitar o moralista em “Beba Mais Leite”. Mas essa reviravolta, que promove a revelação por meio da denúncia, acaba em arrependimento, como em “La Strada”, quando é tarde demais para reconhecer os sentimentos; ou em tentativa de suicídio, como em “Oito e Meio”; ou em desespero em quase todos os filmes ou simplesmente em delírio.


     Não há salvação para personagens, instituições, atividades ou espectadores nesta arte, onde todos su­cum­­bem diante da lucidez de Fellini, que filmou a insanidade como quem organiza uma festa.


Nei Duclós
é escritor e jornalista.

Anônimo deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Fellini das letras": E tudo isto na auto-lembrança eterna de "io mi ricordo" de Amarcord onde penas cintilantes de faisão monumental se confundem com a carícia dos seios fartos da donzela, onde o real e o imaginário são dois planos contidos num só: A memória da vida...
Bravo Fellini.

Vi Vendo, o cineasta. 

Um comentário:

  1. E tudo isto na auto-lembrança eterna de "io mi ricordo" de Amarcord onde penas cintilantes de faisão monumental se confundem com a carícia dos seios fartos da donzela, onde o real e o imaginário são dois planos contidos num só: A memória da vida...
    Bravo Fellini.

    Vi Vendo, o cineasta.

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