Vi muitas coisas estranhas, tristes e constrangedoras lendo os Arquivos Digitais da Revista Veja dos anos 60 e 70. Mas nada parecido com o que vocês vão ler abaixo.
Aqui, não se trata de fulanizar a crítica, voltando a responsabilizar o editor da publicação na primeira metade dos anos 70, o jornalista Mino Carta, pelo alinhamento da publicação com o regime militar. Esse atrelamento ficou bem descrito e demonstrado nos posts anteriores que compõem a série Especial Ditadura. Como esses posts já foram igualmente objeto de critica e de uma explicação do editor, darei agora um passo adiante.
Passo a contar duas histórias muito diferentes acerca de um mesmo personagem que teve um fim trágico, o militante da VPR Massafumi Yoshinaga, jovem guerrilheiro que virou uma espécie de prenda involuntária do regime militar à custa de muita humilhação e torturas. Uma pertence ao campo do jornalismo. Outra, ao da História.
Em 15 de julho de 1970, o rosto desse jovem foi exibido na capa de Veja ao lado da manchete “Terror Renegado”, reproduzida no alto desta página.
A reportagem foi apresentada em editorial assinado por Mino com a seguinte justificativa: “alguns moços, ex-integrantes de bandos terroristas, descobriam e declaravam que o caminho da subversão não leva ninguém a nada”.
A reportagem, que começa na página 16, recebeu o título “Autocrítica do Terror”. Começa descrevendo a alegria do ditador Médici com as menções elogiosas do ex-militante da VPR à Transamazônica, a suas incursões pelo Nordeste e à extensão do mar territorial brasileiro para 200 milhas.
Detalhe da capa: a prenda e o júbilo do regime |
A revista não atentou para o fato de que não fazia sentido, naquele momento da história, que um ex-guerrilho, sob custódia dos militares, tecesse loas às obras do “Brasil Grande”. A exposição de seu rosto na capa era a foto de um troféu que a ditadura obteve com suas maquininhas de provocar arrependimento de alta voltagem — e os socos e pontapés com que os jagunços dos quartéis e da polícia costumavam brindar quem se insurgia contra o regime.
O curioso é que a semana anterior havia sido pródiga em arrependimentos públicos de presos políticos. Que o diga o jornalista Celso Lungaretti, outra prenda colocada na mesma cesta servida pela ditadura à opinião pública por intermédio de Veja. Traído pelos próprios companheiros, foi obrigado a exortar os jovens brasileiros a não se deixarem seduzir pela impaciência na luta em prol das reformas — e a apoiar os projetos do governo de então. “O Brasil ingressa num período durante o qual as conquistas nacionais vão, pouco a pouco, se afirmando, abrindo para a Nação um caminho de esperanças”. Ninguém desconfiou que essa frase soava estranho na boca de um ex-guerrilheiro.
Lungaretti consumiu 34 anos de sua vida para se reabilitar. Só conseguiu isso em 2004, depois de lançar o livro “Náufragos da Utopia”. Logrou resistir ao patrulhamento e à perseguição implacável, primeiro do regime, depois dos ex-companheiros que falsamente lhe atribuíram a denúncia de um campo de treinamento da VAR-Palmares.
Um amigo seriíssimo, pautado por sua revista para a apresentação dos “arrependidos”, se lembra muito bem do dia em que os “terroristas” concederam a estranha entrevista na sede do Segundo Exército. “Minha impressão era a de que haviam feito uma lavagem cerebral com eles”, relembra o repórter 42 anos depois. “Eles pareciam dopados”.
Com sua morte precoce, ocorrida de maneira trágica seis anos depois, Massafumi entrou para o rol dos renegados e esquecidos até ser resgatado por Pérsio Arida. Ele escreveu um lindo artigo para a edição 55 da Revista Piauí contando o que, salvo dentro de seu ambiente familiar, pouca gente sabia: seu envolvimento com a VPR aos 18 anos de idade.
Arida revelou que participou de um único ato “revolucionário” — a colocação de uma faixa na boca do Tunel da Avenida 9 de Julho, em São Paulo, com um bordão contra os patrões e o capitalismo. Caçado como um terrorista de alta periculosidade, escondeu-se numa garçonnière que o pai mantinha em conjunto com um amigo.
Antes desse ato, por uma única noite, abrigou um militante a pedido de sua organização. Era Massafumi. Pérsio Arida descreve assim o encontro de ambos:
“Foi-me pedido que desse guarida, por uma noite apenas, a um homem da pesada, procurado. Era um revolucionário de verdade, que andava armado e fazia ações revolucionárias. Concordei relutantemente – uma noite apenas, ele tem que ir embora no dia seguinte pela manhã, bem cedo, antes das empregadas ou meus pais acordarem.
Ele chegou na hora combinada e entrou na casa rapidamente, como que fugindo de uma perseguição. Para minha surpresa, estava visivelmente amedrontado. Não largava a arma. Um nissei mirrado e com rosto de criança, nervoso e inseguro, completamente diferente dos revolucionários de verdade que imaginava existirem. Temeroso de qualquer envolvimento maior, expliquei onde eram o banheiro e a cozinha, dei boa-noite e foi só”.
O próximo encontro entre ambos ocorreu nas instalações da OBAN e é descrito desta forma na entrevista à Piauí:
“Todos fomos reunidos sem aviso no pátio para ouvirmos a preleção de dois ex-terroristas. Por um instante sequer entendi a expressão – se haviam sido presos, eram ex-terroristas por definição. Outro, no entanto, era o significado – eram terroristas arrependidos.
Massafumi Yoshinaga, disse um dos militares. Um patriota que se arrependeu dos assaltos a bancos e da guerrilha. Ele, que conhece o terror por dentro, quer transmitir a vocês uma mensagem importantíssima. Ouçam e meditem. É um pregador que presta um serviço à pátria, alertando a juventude brasileira para os riscos do comunismo e as ilusões da luta revolucionária.
Fiquei branco. Era o nissei da pesada que se hospedara na minha casa. Estava exatamente na minha frente. Impossível que não me tivesse reconhecido”.
Pérsio Arida temia que o japonês arrependido o delatasse. Conseguira ler trechos de um relatório e baseara em informações que os militares já conheciam. Até então, havia sido bem-sucedido em sua estratégia de dissimulação para não ser levado à tortura. Diante da troca de olhares com Massafumi, passou a esperar o pior:
“Passei aquela noite em claro, esperando o momento em que fossem me chamar para uma sessão de torturas, de vingança. Havia escondido um terrorista em minha casa, portanto era cúmplice do terror, e não havia dito nada sobre o nissei no meu depoimento. Os caras iriam me bater para saber quem mais se escondera na minha casa.
O dia raiou, mais um dia inteiro se passou e outro e outro. Nada. Reinterpretei a situação: Massafumi Yoshinaga deve ter sido barbaramente torturado, pensei, faz esse papel de arrependido só para se livrar dos suplícios. É tudo fingimento. Por isso não me denunciou, por isso não nos permitiram conversar com ele a sós. Aquele discurso tinha sido um vexame público, vergüenza ajena, expressão concisa e intraduzível do espanhol, mas nada além de um vexame, uma estratégia de sobrevivência”.
Arida ainda se depararia com Massafumi duas outras vezes. Foram encontros indiretos, por intermédio das páginas de veíuclos da chamada grande imprensa.
“Um dia encontrei, largada num canto e amarelada pelo passar do tempo, uma Veja com Massafumi Yoshinaga na capa e o título “O terror renegado”. A reportagem contava que o presidente Emílio Garrastazu Médici expressara, em audiência com dirigentes da Ordem dos Advogados do Brasil, sua satisfação com o depoimento público e espontâneo do ex-terrorista. (…)
Li depois num jornal que terminou se suicidando. Suicídio de vergonha, de culpa e arrependimento, haraquiri de uma alma que não encontrava mais lugar neste mundo. Terrível como todo suicídio. Mas quem chora a morte de um traidor? Da minha parte, prefiro guardar dele apenas a memória daquele encontro furtivo de olhos no qual, mesmo tendo me reconhecido, nada revelou ao militar que com tanto orgulho o apresentou como um verdadeiro patriota”.
Eis o que aconteceu a Massafumi Yoshinaga. Seis anos depois, devastado pela vergonha e pela depressão, pôs fim à própria vida após duas tentativas de suicídio malsucedidas. As declarações públicas de arrependimento, que segundo Veja causaram tanto júbilo ao governo militar, foram obtidas mediante a utilização dos mais cruéis e abjetos métodos de tortura. Deixaram nele uma ferida profunda e mortal, algo como um cancer que vai fincando tentáculos em todos os tecidos e órgãos para, ao final, matar o hospedeiro. A vergonha pela falsa confissão do arrependimento que não lhe restituiu a vida — apenas adiou a morte por alguns anos de muito sofrimento.
É impossível saber quanto o relato de Veja, que mimetizava a grande conquista do regime, teve responsabilidade sobre o quadro mental que se instalou no ex-guerrilheiro arrependido. Mas pode-se imaginar o estrago que essa exposição provocava à época. Afinal, que espaço vital teria restado ao militante Massafumi Yoshinaga depois de ser apresentado ao País como um dos trunfos do regime dos quartéis, um caso de conversão quase religiosa ?
Ao forjar um depoimento público para se livrar das sevícias e do suplício, não restou a Massafumi alternativa a não ser, como na letra de Cazuza, encontrar abrigo no peito de seu traidor. Apesar de ter tido sua pena anulada, o ex-guerrilheiro permaneceu em poder dos torturadores — não mais porque representasse uma ameaça ao regime, e sim para protegê-lo da sanha do justiçamento dos próprios ex-companheiros no tribunal sumário da insurreição.Apanhando da direita, perseguido pela esquerda, envergonhado pelo que fora forçado a fazer, o ex-militante buscou no suicídio a redenção de uma honra aviltada pelas sevícias morais e físicas que lhe haviam sido impostas.
Outros tiveram altivez para enfrentar o legado daquela execração. Aí está o combativo Celso Lungaretti como testemunha das dores provocadas primeiro pelas pancadas, depois pela estigmatização e patrulhamento, que entregou metade de sua vida à busca da reabilitação moral — porque delatar companheiros é uma acusação que se inscreve mais no campo da moral do que no pragmatismo da política e da ideologia, onde produz seus efeitos.
Entre o relato comprometido de Veja, o suicídio de Massafumi Yoshinaga e o testemunho de Pérsio Arida há uma larga zona de fronteira que separa o jornalismo da História. A visão míope do jornalista está conformada pelo pensamento hegemônico que determina a linha editorial. A História, muito mais ampla, repõe, com elementos de lucidez ausentes na interpretação parcial e apressada dos fatos transformados em notícia, algo que se aproxima da verdade. É o caso da desventura narrada neste post.
Como se vê, entre a verdade cristaliza num fotograma da factualidade política e o filme todo da História há uma distinção abissal. A profundidade desse abismo pode ser depreendida da releitura dos textos produzidos à época. Este blog, que não descontextualiza declarações para construir a crítica política, tem política a publicação dos originais referidos para que o leitor possa tirar suas próprias conclusões. Para os que quiserem se dar ao trabalho de fazer esse exercício de prospecção, reproduzo abaixo a íntegra da reportagem de Veja. O download do material em formato PDF pode ser feito aqui.
O artigo de Pérsio Arida pode ser lido diretamente no site da Revista Piauí. Para chegar a ele, basta clicar aqui.
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