Por Vera Regina Pereira de Andrade*
Não saberia precisar quando, sem o auxílio da literatura, se deu a separação entre o humano e o animal, mas ela é com certeza imemorial. Sei falar, contudo - melhor seria gritar - das múltiplas formas de violência que essa separação gerou. Das relações de domínio produzidas em nossas sociedades, a denúncia radiográfica foi sendo seletivamente cumulativa: o materialismo e a exploração de classe, o feminismo e a subordinação de gênero, o anti-racismo e a discriminação racial, o ecologismo e a depredação ambiental, o biocentrismo e a violência contra os animais.
Sem dúvida, das violências denunciadas, “Eles” foram os condenados ao maior silêncio, à menor possibilidade de resistência, e por tempo mais duradouro, muito mais duradouro, bem como têm sido o ancoradouro de todas as outras formas de violência denunciadas, num único corpo indefeso, seres coisificados.
No mundo animal, se reproduz a violência de classe, existindo animais ricos, remediados, pobres e completamente excluídos. Falando sobretudo de cães e gatos, existem animais que desfrutam das delícias do consumo desenfreado de seus donos, consumidores ávidos de Pet shop que não param de se multiplicar, pois o mercado capitalista não poderia deixar de descobrir esta mercadoria tão lucrativa do bicho sacralizado. Existem animais de classe média que desfrutam o conforto razoável que seus próprios donos têm e ainda o afeto necessário como alimento vital. Mas existem os cachorros e gatos pobres, abandonados e dispersos que, com o olhar perdido, não raro acompanhando os cavalos de carroça, na lida dolorosa sobre seus ombros calejados pelo peso das cargas sem fim, pelas ferraduras e os freios, pela dureza das ferragens, pela repetição dos golpes que exigem o trote sem fôlego e o implacável cansaço da sede e da fome.
E, como as meninas e meninos, como os mendigos e vagabundos, como a legião de excluídos que perambula pelas ruas sem nenhum alimento afetivo e material, eles estão lá!
Calejados pela fome, pela sede, pelo laço, pelo cativeiro, pelas prisões inominadas, pelo tormento experimental de seus corpos, pelo extermínio, contaminados pelas doenças que lenta e letalmente vão matando seus corpos e maltratando suas almas, eles seguem lá!
E seguem sob a invisibilidade contínua, cotidiana e cruel dos transeuntes ou expectadores que passam, sem qualquer olhar, nem mesmo de compaixão.
Eles permanecem lá!...até que algo, ou alguém, aborte a dor com um sono eterno e providencial.
Alguns, lá nascidos e multiplicados; outros, lá abandonados. O abandono dos animais é um ato único de violência, porque se trata de um exercício pleno de poder contra quem não detém nenhum poder, e nenhuma possibilidade de defesa e resistência, de sobrevivência autônoma.
A naturalidade e a covardia com que o humano abandona o animal não encontra paralelo entre os animais, de cuja natureza ele participa, numa nefasta relação de superioridade racial. Covardia nojenta!
E os preconceitos estão lá, na linguagem cotidiana: no “vagabundo” simbolizado no cachorro; no senso comum linguístico que replica que “este homem é um animal”, um selvagem, um bicho. O gato é o desaguadouro de um preconceito de forte rejeição; o gato é o traidor, que não estima o dono, apenas a casa, então é um materialista . Seu revés, o cachorro, se bem nascido, é portador de um estereótipo benfazejo: fiel à guarda do próprio dono, é o espelho no qual os humanos projetam, ainda que profundamente equivocados, sua auto-imagem civilizatória.
E existem os bois, jogados na arena da dor e do sangue, e seu fugitivo desespero da farra assassina, impiedosa e imperdoável. Existem cães, coelhos, ratos, macacos...torturados vivos, com múltiplos e inimagináveis métodos, nos laboratórios e cativeiros da “ciência” libertadora.
E os incontáveis animais da selva, que o mercado capitalista não poupa, do terror da vivissecção inútil ao extermínio, passando pelo tráfico e o cativeiro, Mas o preconceito e a discriminação social talvez não tenham comparativo com os animais negros, sobretudo as fêmeas.
E existem, também, os animais domésticos torturados, cativos, atados, famintos, esquecidos, transferidos, terceirizados, por programas, compromissos, transferências, mudanças, esquecimentos. Existem os que se suicidam, que não resistem... E existem tantos outros, anônimos, pequenos e grandes, invisíveis.
Os animais, no entanto, são fieis, sua fidelidade é infinita e comovente. O preconceito é nojento: a adoção dos animais passa pelo crivo da superioridade racial: branco, jovem, macho, bonito e perfumado: de tope no pescoço! O estereótipo tem uma repulsiva dimensão estética, exibicionista, própria dos humanos. A ostentação dos animais é para compensar a ausência de poder social. E que dizer da vergonha humana, ocultada, sonegada, da procedência dos macacos? A irracionalidade como estigma da demarcação excludente e inferiorizadora (nós e os bichos).
Mas também há que se falar de AMOR, um amor quase incontido, incondicional dos humanos que se rendem, cotidianamente e sem estrabismos estéreis, à condição animal, ou melhor, dos “outros” animais diferentes de si e conseguem ver neles, não um outsider, mas um diferente. Dos humanos que acolhem, dos humanos que se abrem para receber uma das mais venturosas expressões de afeto que os bichos, e só eles, são capazes de doar. Dos humanos que compreendem o significado transcendental desta relação e se associam, e se (en)redam, em organizações de defesa dos animais que, felizmente, ganham espaço, simpatizantes, voluntários e entusiastas. Humanos e organizações que fortalecem a convocatória à libertação animal, ao extermínio do trabalho escravo dos cavalos, do massacre dos bois, da tragédia da vivissecção, do abate impiedoso, do olhar derradeiramente triste dos cães e gatos. Trata-se, não de buscar a piedade ou a comiseração, mas a abertura para uma nova relação, de interação, de troca e, de amor.
Humanos, digam sim à dignidade animal, e naquela escrita secular que nos fala dos direitos humanos, escrevamos direitos vitais, redefinindo toda uma vida e uma cartilha na qual eles ingressem com respeito e compartilhamento, como a natureza inteira, feita irmandade e companhia. Contra a herança da sociedade espelhada, em que o animal foi feito à imagem e semelhança do humano, e de sua múltiplas relações de violência; à imagem do que de pior e de melhor na sociedade antropocêntrica se construiu, despojemo-nos por um instante, para aprender e acolher, a todos: cavalos, cães, gatos, pássaros, corujas, coelhos, leões, tigres, elefantes, bois, porcos, patos,...ratos e serpentes, cada um a seu modo, na sua diferença e não no preconceito com que decodificamos seus comportamentos e sentimentos. Escutemos os animais, e nesta escuta curvemo-nos à humilde condição de seres vivos que somos e temos tudo a aprender com eles; e com os animais aprendamos a escutar e conceder voz às crianças, aos velhos, aos deficientes, aos que nada tem, ou de quem tudo despojamos em nome de uma racionalidade excludente.
A inclusão requer, em definitivo, a superação da secular dicotomia natureza/cultura, em nome de um indiferenciado e cósmico respeito à vida: a inclusão é o maior desafio e nela está a melhor fraternidade da terra.
*Vera Regina é professora de Criminologia nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Referência mundial em Criminologia, tendo trabalhado junto a nomes como Alessandro Baratta (Itália), Eugênio Raúl Zaffaroni e Luis Alberto Warat (Argentina), Louk Hulsman ( Holanda), Elizabeth Elliott (Canadá), e Nils Christie (Noruega). Acaba de receber convite para ser professora visitante de uma das mais prestigiadas instituições de ensino dos Estados Unidos e do mundo. Trata-se do Center for the Study of Law and Society, na University of California, em Berkeley.
Peeeerfeito.
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