O “dia não é de alegria!”...
Foi a primeira frase que ouvi, logo seguida de um complemento: “as pessoas costumam meditar, fazer uma auto-análise daquilo que pretendem com a vida que levam, também se impõe uma espécie de penitência em que se inclui o jejum”...
Meu pai disse aquilo ao mesmo tempo em que me entregava uma obra "O Mais Belo Rabi", com a recomendação "leia este livro". A indicação vinha como uma ordem, e lá em casa se respeitava uma determinação paterna, pelo menos na infância. Era a primeira vez que ele me impunha uma leitura. Normalmente apenas comunicava os livros que havia comprado e estavam disponíveis na biblioteca. Sempre fui um rebelde e não gosto de imposições. Mas, acredito, naquele dia devia estar com um semblante indefinido, naquela incerteza que acompanha um "não saber qualquer", a dúvida que antecede uma nova escolha, no caso, de recomeçar a leitura ou de descobrir uma obra interessante para se ler, mas voluntariamente, sem indicação externa. Tinha entre 9 e 12 anos e sabia, por experiência própria, que quando se tem uma tarefa para cumprir, o melhor era acabar logo com a incumbência e se livrar do peso de um remorso, a posteriori, e a maldita consciência do dever não cumprido. E já estava encarando a leitura como um compromisso e não um prazer pessoal dela decorrente. É Sexta-Feira Santa e existe uma aura no ar, como convém a um dia especial. Dia de consternação, e ficar só...
Tudo passa num instantâneo enquanto observo um pai levando um filho pelas mãos em frente do banco onde estou em uma praça no centro da cidade, a criança vem sorrindo alheia ao que se celebra hoje, está contente - como disse Bertolt Brecht, porque ainda não havia recebido a má notícia... Mais além, outro garoto caminha sozinho, não tem a quem recorrer, por isso recorre a todos. Aquela mãozinha estendida era de cortar o coração. Que espécie de sociedade permite tal desempenho? De repente me descubro nela, dentro dela, sou ela, logo a lembrança de Sartre, a respeito da obra "A Náusea", afirmava que enquanto uma criança passasse fome no mundo, aquele livro não tinha o menor sentido. Era retórico para chamar a atenção sobre outra realidade, o que conseguiu...
Descubro-me, igualmente, sem ter a quem recorrer, estou tão só como aquele garoto, e por isso me lembro do meu pai e daquele livro, "O Mais Belo Rabi", que tratava da vida de Jesus Cristo. Uma leitura gratificante, edênica, menos dolorida que o filme "A Paixão de Cristo", dirigido por Mel Gibson. Depois, no ano seguinte voltei a relê-lo, e hoje apenas folheio as páginas detendo-me em parágrafos aleatórios alimentando a consciência de que a liberdade que permite essas elucubrações só faz sentido porque ainda não perdi a capacidade de me indignar!
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