segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Carta ao amigo...



Hemingway

   Meu sempre caro Milton
   Bom dia!
   Alvíssaras!

   Meu mais sincero propósito - o mais fundo possível - nesta mensagem é o de te agradecer.
   As tuas preciosas "dicas" e orientações para a viagem à Cuba foram importantíssimas e, sinceramente, maravilhosas.
   Enviaste uma mensagem grande, didática (no melhor sentido do termo), depois uma suplementar.
   De cima para baixo, impressas, andei com ela por Havana.
resumindo, sumarizando: ficamos encantados com a viagem.
   Dez dias mas com avião, escala, conexão, esperas (via Panamá), em cuba mesmo uns oito dias e meio.
   Encantei-me com o povo: caloroso, amigo, fraterno.
dançante. Vi belas morenas dançando salsa.
   Em Varadero, fizemos amigos que estavam descansando também no hotel de lá.
   Mas houve tanta empatia que nos convidaram para irmos às suas casas em Havana. Letícia, uma amiga, que trabalha numa fábrica de charutos, nos levou lá e indicou, ofereceu um ótimo guia para nos explicar tudo, mostrar a fábrica, ver os operários trabalhando.
   A partir da tua ideia de contratarmos um táxi, combinando o preço antecipadamente, fizemos uma amizade muito forte (parece mentira) com um engenheiro mecânico que havia trabalhado em Angola, e criou-se um clima ótimo, maravilhoso.
   Tivemos duas vezes em Havana.Depois da primeira, até pelo meu tumor,descansamos uns dias em Varadero (águas límpidas), e depois voltamos para Havana (de novo).
   Só no museu Hemingway passamos quase uma manhã toda.
   Emocionei-me - foi na primeira estada - muito no Museu da Revolução.
   O sentimento do não esquecimento, do não olvido, da ausência de oblívio, para mim é fundamental na vida. 
   Pela memória, pelos combatentes. (ah, levei muitas canetinhas, muitas folhas de papel, fichas, a célia cremes, batons, sabonetes, biscoitos,  lápis para mulheres, para pintar sobrancelhas, muitas coisinhas). 
    Uma camareira do hotel em que ficamos nas duas vezes em Havana (hotel Presidente), criou um laço muito terno conosco, deixou, no final, um bilhete em inglês (ah, instrução, ah, formação..), e disse estar aprendendo italiano e alemão - vi muitos turistas destas nacionalidades e do Caribe, e conversei bastante com um catalão muito consciente.
    Não digo nada de novo, mas a educação e a saúde me impressionaram muito, e não sei como dizer, uma ausência de sentimento de consumismo, daquele febre da burguesia brasileira com volúpia de comprar, comprar comprar, de ir para Miami - adquirir objetos, sempre "comprando", nunca "sendo" - perdoa a filosofice.
    A Havana antiga, arquitetonicamente, é estupenda, como o povo mais simples.
    Sim, fomos à "Bodeguita del Medio" - com o mesmo cardápio há mais de 70 anos -, "La Floridita" - frequentado por Hemingway, tem lá até uma estátua dele - , na sorveteria Copppelia - onde ocorreu uma conversa com um garçom incrivelmente preparado e instruído e-, conhecemos o hotel Nacional (que como informaste, foi uma espécie de sede da máfia, e outros lugares, muitas outras coisas, como a Biblioteca Nacional José Marti, perto da Praça da Revolução, uma estupenda biblioteca.
    Uma amiga, que trabalha com a Letícia (outra amiga) na fábrica de charutos - convidou-nos para um ritual da "santeria", que lembra a nossa macumba, mas algo mais serenado. Mas fiquei feliz pela confiança. aqui o ritual é só para cubanos. Algo muito bonito.
    Eu e Célia ficamos muito tocados pela confiança. 
Num local, onde um canhão é acionado todos todos os dias, todos (às 9 da noite, pontualmente - o ritual começa meia hora antes, mais ou menos -, seguindo uma cerimônia  de muitos anos- bonito, demorado, o meu amigo Osmary, leu em espanhol a carta de despedida de Che a Fidel, e fiquei  muito emocionado - naquela noite de Havana, com uma linda vista de toda a cidade, a antiga e a nova.
    Não estou mitificando. São 57 anos de embargo (ou de "bloqueio", como os cubanos intitulam). E não falei do poder.
E prefiro, neste momento, não meditar sobre isso.
   Na Avenida Molecon, de 7km. (o pessoal namora, pesca, conversa, bebe) andamos muito - em algo, lembra a avenida beira mar norte, em Florianópolis, andamos muito.
   Fiquei muito impressionado com a segurança, nós que vivemos num país violento, banalizado pelo mal, isso é impressionante.
alguns dizem que, como cuba depende muito do turismo e do dinheiro enviados de fora, há um estatuto não escrito: não mexam com turistas- assaltantes vão para o além.
   Teria muito mais coisas para te contar, mas não te cansarei - pelo menos agora.
   Só num restaurante, caro, vi umas mocinhas que serviam um tanto ousadas, mas pessoalmente não vi prostitutas. Mendigos? dois, um num hotel, enquanto assistia a um show de salsa, e uma pessoa em andrajos vendendo jornais (não vi bancas de revistas, é é muito difícil encontrar jornais), mas conheci Havana por um homem da cidade (ele nasceu no interior, Pilar del Rio, acho que o nome é esse, mas vive há muitos anos em Havana).
    Abraços no teu  querido irmão, também meu velho amigo (desde fevereiro de 1970, como tu) Rubem Mauro que, oralmente, também deu dicas para mim. Sou grato a ele.
   Avante!
   Abraços Emanuel Medeiros Vieira*

*Não escrevi antes, porque a semana que precede à aplicação quimioterápica não é fácil. Fiz ontem (dia 9 de outubro, sexta-feira) a quimioterapia, agora reforçada em 50 porcento, porque na consulta anterior, em 11 de setembro, através de um complexo exame  (devo ter contado) feito em Brasília, foi revelado que o quadro havia piorado.
   Vamos ver o resultado. Não me entrego. Continuo lendo, escrevendo diariamente, lendo também todo os dias, amando, produzindo e - como no filme de Bergman ("O sétimo selo") - eu sei, disputando uma partida de xadrez com a morte, sigo com esperança e fé na vida!
   E agradeço todos os dias pelo dom da vida -  com garra, dor, luz - vivida até aqui: 70 anos.
   Com o colega marxista (que tem terços em seu carro), orei na catedral de Havana. Releva os erros de digitação.
   Abraço afetuoso grato do teu amigo velho, com irrevogável estima, Emanuel (e da Célia, grata).
   Para desdramatizar um pouco...contaram-me no Museu Hemingway que Mussolini, o ditador italiano, mandou um cheque em branco para que o escritor cobrasse  o que bem quisesse pela cabeça de um veado  que havia caçado na África (há que contextualizar e não julgar Hemingway- era um pescador, um  caçador e um escritor excepcional).
   Hemingway respondeu no verso do cheque: “Mussolini: se quiseres uma cabeça de veado, como está, vai à Africa e caça. não vivo para caçar, caço para viver".
   Quero problematizar  a burocracia do regime em alguns aspectos, mas deixarei para depois. Não quero que a carta fique enorme... 
   Não fui comprado pelo regime, nem pela cia. cheguei à Havana um dia depois da visita do Papa, que causou muita comoção. 
   O papel desta grande figura na aproximação dos Estados Unidos com Cuba foi fundamental. E será mais ainda. Pela paz entre os povos!

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