quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

SABEDORIA DE GAVETA

Nei Duclós
Especial para o Cangablog

Fiquei duas décadas lendo memórias e estudando movimentos sediciosos de militares brasileiros, mas isso não me faz alguém que entenda do assunto.  Quando Sérgio Buarque de Holanda foi escrever sobre a farda na segunda metade do século 19 em seu capítulo A Fronda Pretoriana, pediu subsídios para John  Schulz, brasilianista que publicou nos anos 90 O Exército na Política, ambientado nessa época de final de Império e início da República. O grande SBH entendia do assunto? Não, ele foi buscar apoio. Schulz entendia? Não, ele foi atrás de arquivos, livros da época, anais do Congresso etc.

Entre os leigos, as pessoas que procuram produzir pensamento sem o aporte da formação universitária, é comum ouvirmos que não podemos opinar sobre determinado assunto pois não entendemos dele. O conhecimento fica assim em compartimentos.  Levi-Strauss escreveu no livro Tristes Trópicos que no Brasil não podia haver dois especialistas sobre um só tema que daria briga, os contendores se entredevorariam.  Esse abrir de comportas, que é o verdadeiro fluxo de conhecimento, é o hábito das pessoas que procuram saber seriamente de algo e para isso lançam mão das fontes, inúmeras e as costuram de maneira paciente ao longo de um trabalho ou, como diria SBH, “por mais de uma vida”.   

Fica difícil tratar de polêmicas que não envolvam a imagem que os outros fazem do preparo ou da especialidade que dispomos. Não é permitido, para quem é da literatura, saber sobre jornalismo e vice-versa. Sim, hoje isto está mudado, podem dizer, mas não é bem assim. É proibido ainda servir a dois senhores. Ou você é jornalista das pretinhas ou repórter fotográfico. Não pode ser poeta ou romancista, que pega mal. Francis Ford Coppola disse recentemente que os artistas não deveriam ganhar dinheiro, e sim dispor de patrocínio, como acontecia antigamente. Deveriam ter uma atividade remunerada e fazer arte aí pelas cinco da manhã, sempre fora do expediente.

Adepto do download, que dá rasteira em direito autoral de filmes e músicas, Coppola enriqueceu produzindo vinho, já que perdeu muito dinheiro fazendo cinema. Mas que entende o diretor de O Poderoso Chefão de uva? E o que ele entendia de Máfia quando pegou o livro de Mario Puzo? Nada. Foi por isso que inventou o italiano do cinema, que é aquele cara que dá tapinhas no rosto dos outros. Isso não existia em lugar nenhum (hoje, talvez, desde que existam italianos reais acreditando no filme). Ninguém trata os outros estapeando o interlocutor. Mas ficou. Hoje, qualquer filme que tenha italiano oferece esse gesto inventado nas obras de Coppola.

Devemos entender apenas de uma coisa: linguagem. Porque tudo não passa de vogais e consoantes, linhas e pontos. Seja vinho, cinema, pintura, literatura ou jornalismo, precisamos saber ler o que se passa, e perguntar sempre. É maneira que temos de entender alguma coisa. Só por meio da linguagem poderemos conversar com os especialistas de igual para igual. E esquecer os que nos acusam de não entender disso ou daquilo. Deixar sem resposta a velha provocação da fronteira: “Mas que entende tu de capação de touro?” 

*A partir de hoje o Cangablog conta com a colaboração do jornalista, poeta, escritor e amigo Nei Duclós. A participação de Nei engrandece e valoriza este espaço.

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