domingo, 20 de fevereiro de 2011

DRIBLES DO PASSADO

Por Nei Duclós

"Oscilamos assim entre os que desconhecem o estado de guerra no Brasil desde seu descobrimento, os que confundem a revolução de 1930 com a de 1932 e os especialistas em lugares comuns, repetidos à exaustão para o gentio, num cansaço endêmico que transforma o país num bocejo contínuo".

A ignorância sobre nosso passado é tão profunda e persistente que, para compensar, muitas vezes é celebrada como virtude. Achar que existe algo louvável em desconhecer o Brasil antigo é perder a oportunidade de enxergar que estamos presos ao tempo como um escravo à sua corrente, para usar uma imagem singela e certeira. Medra nesse ambiente pantanoso um vírus letal, o monopólio dos sabichões. Basta querer abordar algum evento passado para haver
caras torcidas ou de paisagem, a sugerir que as coisas não são “bem por aí”.
Como há pouca concorrência entre os que se interessam pelo assunto, vivemos ao redor da iconografia oficial (que circulam hoje em sua maior parte pela política aparelhada), os historiadores pop emergentes (os que pesquisam um evento por dois anos e desovam um catatau de 500 páginas e são destaques obrigatórios da mídia, além de ganharem os tubos na indústria de cursos e palestras) e dos tapados puro e simples, que misturam acontecimentos com o desplante da incultura incentivada pelo sucateamento do sistema educacional. Ficam de lado os clássicos que deveriam ser sempre estudados para que diminuísse um pouco o tamanho do estrago. Mas estes estão sendo “desconstruídos” pela idiotia ágrafa que toma conta de tudo.

Oscilamos assim entre os que desconhecem o estado de guerra no Brasil desde seu descobrimento, os que confundem a revolução de 1930 com a de 1932 e os especialistas em lugares comuns, repetidos à exaustão para o gentio, num cansaço endêmico que transforma o país num bocejo contínuo. Ficamos sem saber que a calamidade pública da política econômica do início da República é idêntica ao que temos hoje, não numa espécie de repetição de eventos, mas como continuidade de uma situação insolúvel. Quando uma pesquisa revela que o Brasil tem predominantemente ascendência européia, inclusive entre a população negra, todos levam um susto, como se a pesquisa fosse uma espécie de crime contra as graníticas certezas as quais nos acostumamos.

O perigo é transformar a mudança de paradigma numa nova certeza sem contestação, reproduzindo assim o estado de letargia mental a que nos condenamos. Mas como existem autores capazes de nos mostrar a importância desse conhecimento por meio de trabalhos primorosos, temos a chance de erradicar um pouco a miséria da estupidez generalizada, distribuída entre os que não sabem que não sabem, os que adoram não saber e os que sabem um pouco e acham que sabem tudo.

Um desses trabalhos é o de Suely Robles Reis de Queiroz, professora doutora da Usp e seu brilhante Os Radicais da República (Brasiliense, 1986). Em poucos capítulos enxutos e decisivos, ela faz uma análise do início da República, focada nos jacobinos, um grupo radical diluído em várias tendências e personalidades que se insurgiu contra a restauração monárquica, os monopólios dos portugueses no comércio predial e de alimentos, o civilismo de casaca e promotor da política econômica especulativa, tendo o cuidado de não mitificar nada nem ninguém, apenas mostrando o que a historiografia fez com o assunto e contribuindo para esclarecer uma série de nós.

Mergulhamos assim na época em que houve um atentado contra o presidente da República Prudente de Moraes (o que colocou os jacobinos na marginalidade política), quando inventaram tantas empresas fictícias que se fossem reais teriam, por exemplo, implantado no Brasil a maior rede ferroviária do mundo, quando bancos podiam emitir dinheiro, o que provocou alta insuportável da inflação, quando a migração européia de massa inchou as cidades brasileiras e povoou o interior, entre outros acontecimentos que nos mostram a falta de saneamento básico, a identificação de facínoras com a polícia, a complexidade do jogo político etc. Não é pouco para um livro pequeno. E, como ele, existem muitos outros que valem a leitura, para que possamos entender melhor o que herdamos e o que vamos repassar para os descendentes.

Acredita-se que nossos problemas são atuais,ou,para usar uma palavra da moda, pontuais. Não são. Eles vêm de longe, e estão misturados às nossas raízes, no solo da nação que precisa se superar.

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