Era preciso que se dissesse logo: um dia de manhã clara com céu azul, num domingo de inverno às margens da Lagoa. Para não se perder nada, deixar-se ficar enquanto se bebe um café com leite observando os raios de sol beijar pontos esparsos permitidos pelo fícus gigante que abraça toda a rua em frente.
Só então, com esse quadro na memória, abrir o jornal do dia e viajar no desvario da insolência humana tentando agarrar-nos em cada página para nos afogar na insipidez da desesperança. Antes que a percepção desse outro mundo te engula, você ergue a cabeça e constata que a natureza continua ali compondo um rico cenário no qual somos atores secundários, só então retoma a leitura...
Foi quando as percebi no caderno de cultura. Noto que uma é mais idosa, embora ambas fossem velhas. Fico imaginando que poderia ser um casal. Mas também poderia ser dois amigos ou duas amigas. É irrelevante, o que importa é que estavam juntas, duas gerações. Como se já tivessem cumprido o seu papel nesse mundo, se deixavam captar pelas lentes de algum fotógrafo perspicaz, o instantâneo estava feito e aquilo já era história que a eternidade julgaria.
Aquela fotografia descolorida no centro de uma página de um jornal standard tratando de um tema contemporâneo, destoava. Talvez o articulista pretendesse sugerir uma ideia de distanciamento.
Fico imaginando como nós, ditos cidadãos do século 21, tratamos a passagem do tempo. Pra começo de conversa vivemos em uma “civilização” onde o descartável pontifica: usamos e jogamos fora. O pior é que essa relação do “facilmente substituível” está contaminando o próprio comportamento humano. Discute-se pouco, lembro que discutir aqui é trocar ideias. Há um conformismo com essa modernidade, vamos aceitando tudo e incorporando na mesma velocidade sem um debate prévio. Aliás, em alguns setores, sequer acompanhamos a evolução tecnológica tal é a sua velocidade e ímpeto.
Ninguém pode brecar a tecnologia, mas e as relações humanas?
Outro dia me despedi de um amigo e mandei recomendações a dna. Márcia (era a mulher dele) ele se apressou em dizer que já estava casado com outra e pôs o dedo na boca para eu não falar alto e essa outra que estava nas proximidades ouvir... Poderia comentar algo, mas não sirvo para conselheiro matrimonial... Já presenciei gente afirmando que estava no oitavo casamento com a maior sem cerimônia, como se pretendesse entrar para o Guinness Book.
Estranho pensar tudo isso agora, volto para a página do jornal e vejo os escritores William Faulkner e Orson Welles, ambos dedilhando suas máquinas de escrever, eles usavam uma Underwood; mais à direita, o dramaturgo Nelson Rodrigues com a sua Remington e em cima, à esquerda, Ernest Hemingway com a sua Smith-Corona (ele tinha uma Royal como reserva) e penso na minha Olivetti Lettera 32 que ganhei do meu pai (que escrevia numa Remington onde aprendi a datilografar com os dez dedos) e no quanto tive de procurar até encontrar num antiquário uma Royal, igual a do old “Papa” Hemingway, só para entrar no mesmo clima... A literatura sim, uma paixão a ser cultivada. Um bom livro é uma companhia que não decepciona.
Volto para a foto grande que me chamou a atenção no início: duas máquinas de escrever Remington antigas, a menor é a mais velha, destroçadas junto com um liquidificador num ferro velho que ilustra a matéria... Lembrei do amigo, artista plástico Telomar Florêncio e a frase que escreveu ao lado de sua prancheta “Amanhã seremos apenas uma fotografia na parede de alguém, depois, nem isso”.
Desisto da leitura e fico curtindo aquela manhã de inverno onde a natureza já fez tudo e o homem continua sendo um ator secundário.
"um bom livro é uma companhia que não decepciona"....Duca!
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