Sobre a idéia de que procurador público não poder ser juiz eleitoral no TRE e outras irreflexões
Por Ruy Samuel Espíndola *
Li a nota divulgada no blog Canga Blog, dia 25 de janeiro, na qual se fez alusão e crítica a possibilidade de procurador público ocupar cargo de juiz no TRE, ao entendimento que se estaria cumulando cargos indevidamente, contrariando dispositivo da Constituição que proibiria tal situação.
Também, provocado pela nota, fui verificar o objeto e trâmite da ação civil pública apontada e seus demandados na qualidade de litisconsortes do Município de Florianópolis, bem como os advogados de cada qual. Ação civil pública, que segundo quis dar a entender a nota, envolvia tema de improbidade administrativa e apenas um candidato da lista de desembargadores e, como seu advogado, o atual vice-presidente da OAB/SC.
Ocupo-me das questões objetivas suscitadas pela nota. As questões pessoais, subjetivas, neste lugar e nesta nota, não serão tratadas, por desnecessárias ao debate em foco.
Creio, antes de tudo, que a nota, traz, além de seu anonimato, o ânimo de atacar dois institutos de significativa relevância social, política e jurídica, institutos ilustrados, há muito, pela advocacia, pela classe dos advogados: o quinto constitucional e as vagas de juízes oriundos da OAB nos Tribunais Eleitorais.
Mas fiquemos, sem grandes aprofundamentos, com o primeiro argumento da nota: procurador público não pode ser juiz de tre.
Antes de tudo, o procurador público, seja ele federal, estadual ou municipal é um advogado. Para fazer o concurso e exercer o seu trabalho forense, ele precisa estar inscrito na OAB, pagar anuidade, se submeter ao seu código de ética. Ele desfruta das mesmas prerrogativas, deveres, obrigações, direitos e franquias de qualquer advogado. Sem distinção se recebe seu sustento de honorários privados ou vencimentos públicos.
A função de juiz eleitoral, por mandato e investidura temporária, conferida a desembargadores estaduais, juízes de direito, juízes federais e advogados, nos tribunais regionais eleitorais, resulta de uma estrutura jurídica singular, sem símile em outras ordens jurídicas alienígenas, e é peculiar em nossa história constitucional, desde a Constituição de 1934. Francisco Campos, o “Xico Ciência”, grande jurista brasileiro, homem conservador, influenciou tanto essa configuração nos Tribunais eleitorais, quanto o quinto constitucional nos tribunais federais e estaduais.
Significativa parcela dos procuradores que atuam nos foros deste País são procuradores públicos, municipais, estaduais ou federais. Advogados públicos. Podemos dizer que quase metade dos recursos ou contrarrecursos que tramitam em todas as instâncias da justiça brasileira, são assinados por procuradores públicos. Esses, muitas vezes, mais que o Ministério Público, são os verdadeiros e efetivos defensores dos interesses públicos, do dinheiro público, da causa pública. Pouco se reconhece isso! Pouco se fala disso! Nada se reflete sobre o assunto!
Eles, como os juízes e membros do MP, recebem dos cofres públicos. O MP, por opção legislativa, não íntegra o colegiado tribunalício dos TRE´s, mas encontra-se na fatia legítima e necessária do quinto constitucional.
Dizer que procurador público, seja federal, estadual ou municipal, não pode ocupar posto no TRE, é menosprezar as peculiaridades da ordem jurídica e o cuidadoso processo de escolha desses juízes, que começa nos Tribunais de Justiça e culmina com a assinatura do Presidente da República.
Fosse válida a falsa idéia divulgada na nota, mais da metade dos advogados atuantes em Tribunais, os procuradores públicos, estaria impedido de assumir cargo de juiz nos TRE´s. Que é Tribunal e exige de seus membros experiência rica e diversificada! E que privação triste seria para a sociedade, o Judiciário e a advocacia! Em todo o País é curial, é corriqueiro, é comum, que procuradores públicos ocupem essa relevante e nobílissima função de juiz eleitoral!
O advogado, que é juiz no TRE, não está impedido de exercer a advocacia, salvo na justiça eleitoral. Isso já decidiu o Conselho Federal da OAB, os próprios Tribunais Eleitorais e mesmo o CNJ.
Por questões motivadas por interesses voltados exclusivamente a brandir críticas devastadoras contra um dos candidatos da lista, se toldou, ensombreou, amesquinhou-se a riqueza de instituto constitucional que transcende o imediato, o aqui e agora das disputas políticas menores.
A inteligência dada na nota está a defender inaceitável desigualdade e incorre em paradoxo. Desigualdade, por que para ser juiz do TRE é necessário ser advogado, com mais de dez anos de advocacia, idoneidade moral e conhecimento reconhecido pela classe da magistratura e da advocacia. NADA MAIS! Paradoxo, pois pela razão apontada na nota ora criticada, nenhum dos integrantes dos Tribunais Eleitorais, além dos advogados de origem privada, poderia ocupar cargos de juiz nos TRE´s.
A natureza do vínculo funcional do advogado, se privada ou pública, é desimportante para a magistratura eleitoral tribunalícia. No caso, pela natureza do direito eleitoral, demandado conhecimentos de direito administrativo, direito constitucional, direito processual cível e penal, o fato de o vínculo do advogado ser público, apenas sublinha sua experiência, qualifica seu conhecimento e o faz aprovado em sua competência quatro vezes: exame de ordem, concurso público para o cargo de procurador, seleção pelos desembargadores - magistrados presumidamente mais maduros - e magistrado maior da nação, o Presidente da República, informado pelos canais que lhe são próprios!
Presenciei no TRE/SC exercente do cargo de juiz eleitoral, advindo da magistratura federal, que, ao mesmo tempo, além de exercer esses dois cargos (juiz federal e juiz de tre), exercia o mandato de Conselheiro do CNJ. Ou seja, ocupava três funções ao mesmo tempo! A voz crítica anônima veiculada na nota não deu o ar de sua graça, nem ao menos para fazer-nos refletir sobre a possibilidade jurídica de tal situação! Que é legítima tal qual o é a de procurador público municipal que exerce função no TRE, na qualidade de juiz!
Levado ao extremo o falso argumento, nem mesmo os juízes e desembargadores que judicam no TRE, poderiam ali figurar. Pois estariam cumulando cargos, funções, etc.
E dar a essa situação um ar de ferimento da legalidade e da moralidade administrativa é algo ainda mais irracional e ilógico. Em nosso País, muitas vezes, aquilo que contraria os nossos interesses mais imediatos, não se compatibiliza com nosso particular senso de justiça ou hostiliza nosso horizonte político de conveniências, pode soar como imoral... E aí às favas com a segurança e a certeza do direito! Assim, a proibição não advirá das regras legais prévias, mas dos juízos discricionários, que através de fundamentações moralistas, pretensamente calcadas em princípios constitucionais, chegam a qualquer juízo condenatório, acusatório ou difamatório.
Para não esquecer o ânimo da nota, que ao mesmo tempo mata o “carvalho” do quinto constitucional e da participação dos advogados no TRE, e fere a “couve” dos interesses momentâneos borbulhantes no caldeirão de uma eleição para desembargador, através do quinto constitucional, na vaga dos advogados: ela propositalmente quer enganar o eleitor, e passar-lhe o certo pelo errado.
A ação civil pública referida envolve todos os procuradores do Município de Florianópolis. Tem como objeto a discussão de valia ou não do recebimento de honorários desses procuradores por fundo público. Em nada trata da Lei 8.429/92, da lei de improbidade. O Vice-Presidente da OAB, enquanto advogado e não vice-chefe da seccional, defende a associação dos procuradores municipais, e não o específico candidato nominado em uma das listas da OAB. Defender alguém acusado em ação civil pública não é falta ética para nenhum advogado! Ao contrário. Enfrentar temas de envergadura, envoltos em ação civil pública, é tarefa para advogados preparados moral e culturalmente no bom direito, pois a missão é complexa e sempre árdua.
Quando a ignorância e a má fé andam de mãos dadas, pode ser inaugurado o baile da ilegalidade, do arbítrio e da injustiça, tornando a verdade, o bem e a precisão da informação valores de somenos, em uma opinião pública mais preocupada em punir e reprimir, do que refletir e fazer justiça.
* Professor de Direito Constitucional da Escola de Magistratura de Santa Catarina - Mestre em Direito Público pela UFSC - Autor de obras jurídicas e conferencista internacional - Advogado militante no Direito Público e atuante perante os Tribunais Superiores e CNJ - Membro de Comissão Especial da OAB no Conselho Federal da entidade.
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