Alfonsín foi o primeiro presidente eleito democraticamente após a ditadura militar que fudeu com a Argentina depois de um golpe em 1976. Os milicos argentinos eram um bando de tarados que tomaram o poder e tentaram liquidar com qualquer ameaça de esquerda até, pasmem, a terceira geração. Ou seja, a partir do momento que prendiam um "subversivo" iam atrás da família matando filhos, netos, irmãos, tios, primos...assim, pensavam, evitariam vinganças futuras. Os taradinhos daqui não tiveram competência para pensar nisso. Mataram e torturaram "pontualmente".
Em 1983, eu e o jornalista Jurandir Camargo partimos para Buenos Aires. Fomos cobrir, para o Novo Jornal, a primeira eleição livre no Cone Sul depois de uma temporada de terror militar. Em 83 estávamos de volta a Florianópolis depois de chegar de um exílio de três anos no Uruguai.
Partimos, de Florianópolis, em um Ford Corcel rumo a Uruguaiana, última fronteira sul do Brasil com a Argentina.
Chegando na capital porteña ficamos extasiados com o clima de euforia da população. Os argentinos são política, futebol e emoção. Lembro que começamos a andar pelos bares perto del Obelisco e era festa por todos os lados. Grupos de jovens faziam apresentações de teatro na porta dos bares celebrando a abertura política, mas não só política, moral e de comportamento também. Havia acabado a repressão em todos os sentidos. Os tarados haviam fracassado.
Lembro de um grupo de jovens que andava pela rua e, em frente ao famoso bar La Paz (Corrientes 1523), apresentaram sua "peça". Se resumia a um verso que recitavam:
- Se va acabar, se va acabar...aaaahhh!!! (de gozo)
Uma paródia ao surrado
- Se va acabar, se va acabar, la dictadura militar!
Buenos Aires era uma festa. Encontramos vários jornalistas latino americanos que, como nós, não queriam perder essa volta à democracia.
Continuo amanhã ...
Plaza finaceira
Às vésperas das eleições todas as pesquisas davam como certa a vitória Ítalo Luder do Partido Justicialista (peronista). Com a possibilidade de volta da "esquerda" argentina ao poder, os capitalistas começaram a mandar o dinheiro para outras plazas financeiras mais seguras fora do país. O dólar sumiu das ruas e disparou a cotação. Valia uma fortuna.
Jurandir e eu havíamos deixado 7 mil dólares no Banco de La República do Uruguai. Vimos na evasào de divisas argentinas uma oportunidade de hacer plata. Embarquei no Colonia Express e atravessei o rio Uruguai em direção a Colonônia do Sacramento. Fui resgatar nossos dólares para vender em Buenos aires. Depois de duas idas e voltas, desembarquei na capital porteña. Conhecemos um argentino que operava nas plazas financeiras clandestinas que agora tomavam conta dos segundo andares dos prédios da calle Florida e arredores. Para entramos em uma delas passamos por três portas com seguranças e grades de ferro. Quando se entrava na sala a surpresa era grande: um enxame de gente, dinheiro, telefones e fumaça de cigarro. Em uma mesa de uns 5 metros vi a maior quantidade de dinhero que jamais havia visto em toda a minha vida. Ficamos impressionados com o bailado frenético daquela gente contanto dinheiros e falando ao telefone sem parar. Após a inércia militar o país finalmente se movia e com uma rapidez espantosa.
Saimos de lá com uma bolsa com milhões de pesos argentinos. Um problema! Onde esconder tanto volume de dinheiro?
Mar de genteNo sábado, a capital argentina amanheceu como se não tivesse dormido. Foi um dia fantástico. Às vésperas do domingo eleitoral a população estava toda na rua. O comício de encerramento dos Justicialistas (peronistas) seria no Obelisco. Monumento histórico nacional, ícone da cidade de Buenos Aires. Construído para comemorar o quarto centenário da primeira fundação da cidade, fica na Praça 9 de Julho entre Corrientes e a Av. 9 de Julho. Bah!!!!
Desde as primeiras horas grupos gigantescos de militantes peronistas convergiam para o Obelisco congestionando totalmente as ruas do centro da capital. Era um mar de gente. De cada rua surgiam agrupamentos políticos com suas bandeiras, uniformes e hinos próprios. Fanáticos, se dividiam entre Montoneros, peronistas fascistas e outros grupos de esquerda. Os peronistas de direita vestiam uniforme cinza com braçadeiras negras e carregavam bastões parecidos com tacos de beisebol. Eram agressivos e marchavam com perfeição ariana. Tinha outro grupo peronista, de direita, que usava uniforme caqui, tipo escoteiros.
Os sindicatos da poderosa CGT, sob o comando peronista, tomava as laterais da Av. 9 de Julho e montavam seus hospitais de campanha com ambulâncias, centenas delas, médicos e enfermeiros vestidos de um branco impecável.
Começa assim o que, às 8 da noite, seria a maior concentração humana da história da Argentina.
El patilludo
Andamos por todos os lugares procurando notícias e fotografando aquele fenômeno social. Após o meio-dia era impossível andar no meio da multidão. Passamos então a acompanhar o fato histórico com um ponto de vista, digamos, barsístico. Tínhamos um companheiro bolche uruguaio. O nome do cara era Fidel. Pertencia ao Partido Comunista Uruguaio e estava militando, há tempos, na Argentina. Fidel nos acompanhou todo o tempo nos dando dicas e descrevendo as movimentações dos grupos políticos.
Após várias cervezas, lá pelas 5 da tarde resolvemos nos meter bem no meio da multidão em frente ao Obelisco. De repente aquele mar de gente se abre, como em um conto bíblico, e ovacionado pela multidão, entra um piquete de cavaleiros liderados por um gaúcho com melena e grandes costeletas (patillas) empunhando um grande bandeira argentina. O belo cavalo branco tinha que ser contido o tempo todo. Mascava o freio e parecia que ia avançar contra a multidão que apaludia e cantava sem parar. Um show!
- És el Patilludo. Futuro presidente de Argentina.
Terminado o comício a massa se espalhou pela cidade tomando conta dos bares e restaurantes. As discussões políticas, sempre acaloradas, entravam noite a dentro e volta e meia se ouviam sirenes da polícia que vinham apartar escaramuças entre grupos peronistas rivais. A campanha dos blancos de Alfonsín, do Partido Radical, estava desaparecida diante do gigantismo peronista.
Noche de Ronda
Já altas horas da madrugada de domingo Fidel nos convidou para acompanhá-la na vigília que tería de fazer na sede do Partido Comunista. Montaria guarda das fichas de filiação e documentos do partido no centro de Buenos Aires. Tinha um revólver 38 deixado pelo companheiro que rendeu. Ficamos acordados até amanhcer e quando saímos para a cidade era um mar de papel e sujeira. Buenos Aires finalmente estava calma. Parecia deserta. Estava pronta para votar. O domingo de sol traria surpresas nas urnas. No final da noite, após apurada a maioria das urnas, o povo havia dado a vitória para o radical Raúl Alfonsín. A festa já era outra. O Obelisco tomado de gente novamente comemorando a vitória do Partido Radical.
Na segunda-feira, afastado o perigo de vitória dos peronistas, os dólares começaram a voltar em grande volume para o país e a cotação despencou. Trocamos os nossos milhões de pesos argentinos por alguns milhares de dólares com margem de 100% de lucro. Foi uma boa eleição.